Aprendeu com o pai, aperfeiçoou-se com muitos anos de prática. Nuno Santos, 36 anos, é um enxertador muito requisitado não só na região, mas no país. Está há 17 anos à frente de todos os trabalhos agrícolas da quinta que pertenceu à família dos Caiados, uma das mais importantes de Trevões. Junto com o irmão, António, passam os dias no campo e dizem que não se vêem a fazer outra coisa. Eis o seu testemunho.
“Andamos sempre bem-dispostos”
Chamo-me Nuno Santos, nasci e cresci em Trevões. Desde há dez anos que vivo com a minha companheira em Soutelo do Douro, uma aldeia a oito quilómetros daqui, porque ela tem lá casa. Mas continuo a vir para Trevões todos os dias. Faço tudo em Trevões.
O meu pai era o caseiro do Solar dos Caiados e eu sempre o ajudei a fazer todos os trabalhos agrícolas. Estudei, tirei o 12º ano, mas depois não pensei em estudar mais. Foi nesse ano que o meu pai faleceu, e os patrões fizeram-me uma proposta para ficar à frente dos trabalhos da quinta. Eles já conheciam o meu trabalho e, como éramos cinco irmãos e a vida na altura tornou-se mais complicada, aceitei. Aceitei e estou muito contente até hoje. Já me propuseram ir para outros lados, já me ofereceram bons salários – para mim e para a minha mulher! -, mas não quero sair da minha terra. Aqui estou bem; estou muito bem.
Estou a trabalhar com os herdeiros dos Caiados, tenho a chave do solar e da capela da Nossa Senhora da Imaculada Conceição. Mas já cá não vive ninguém há muitos anos. Estou a trabalhar aqui efetivo há 17 anos, e já cá não vivia ninguém. O solar e a capela pertencem agora a um fundo. Nem sei quem são os donos. Todos os anos liga-me um senhor que vem cá avaliar, ver como estão as coisas, e eu tenho de lhes abrir a porta. Nunca ninguém fez obras. E as coisas vão-se degradando.
A minha função é ocupar-me com o exterior, tratar das produções da quinta. E, na verdade, são muitos terrenos e muitas coisas para tratar. Só estes terrenos à volta da casa têm mais de 20 hectares, onde temos nogueiras, cerejeiras e um amendoal. E temos vinhas, há um souto – no total são mais de 200 hectares! Há trabalho para fazer durante todo o ano.
Um dos problemas que temos em Trevões é a falta de mão de obra. Andei muito tempo sozinho a tratar disto, e metia pessoal só na altura das colheitas. Fazemos sempre com gente da terra, mas não é muito fácil porque a população está bastante envelhecida. Na colheita da cereja já nem sobem às arvores. Tivemos de as pôr mais baixinhas, e trazemos tratores e reboques para as pessoas terem os pés mais assentes para conseguir recolher melhor o fruto.
Costumo meter pessoal na altura das colheitas. E para trabalhos específicos nas vinhas, como quando é para fazer a pré-poda ou a esgoma – há quem diga esladroar, mas nós dizemos esgomar. A esgoma faz-se depois da poda. Na poda deixamos uma vara nova que depois vai rebentar em vários olhos – que depois vão dar o cacho de uvas. Na esgoma deixamos só dois olhos para rebentar; e tudo o resto, a que chamamos ladrões, tiramos.
Durante muitos anos fui eu, sozinho, a trabalhar aqui na quinta a tempo inteiro, todos os dias. Mas desde há cinco anos que tenho o meu irmão mais novo, António, a trabalhar comigo. Ele também tem muita experiência na agricultura, esteve em França a trabalhar nos pomares, mas entretanto optou por vir para cá. E trabalha comigo a tempo inteiro.
Neste momento andamos a fazer podas e também alguns enxertos. Como a mão de obra é pouca, andamos a apostar mais no fruto seco. Além de não ser tão exigente, nas colheitas também não é tão frágil. As uvas e as cerejas, por exemplo, podem estar a correr bem o ano todo, depois vem uma intempérie e lá se vai tudo. Nas amêndoas, nas nogueiras, nas castanhas, além de ser menos exigente em termos de pessoal, também é mais seguro.
Tenho pena que não haja mais jovens para trabalhar na agricultura. Eu acho que fogem disto por ser um trabalho duro. Porque já não se pode dizer que é um trabalho mal pago. O que é, de facto, é um trabalho pesado, e se calhar alguns têm vergonha porque acham que é um trabalho sujo. Pois eu não queria outro. Não temos de estar sempre a fazer o mesmo serviço. E, em vez de estar sempre ao computador ou a uma secretária, num dia andamos a podar, noutro a lavrar ou capinar. Andamos sempre a fazer coisas diferentes – e ao ar livre, que é o melhor!
E depois há muito bom ambiente nesta aldeia. Podemos apanhar chuva e frio, mas o ambiente é saudável e acolhedor. Andamos sempre bem-dispostos.
Eu tenho 36 anos e o António tem 27. E damo-nos mesmo muito bem. Nunca nos chateamos. Eu não sei tudo. Apesar do meu pai me ter ensinado muitas coisas, quando vim para aqui não sabia fazer a maior parte delas, fui aprendendo. Nuns anos fazia melhor, noutros fazia pior, e ia tirando ideias de umas e de outras para me conseguir aperfeiçoar. Mesmo quando trago cá pessoal a trabalhar, e apesar de ser eu o caseiro e de ser eu a mandar, se eles me disserem “Ó Nuno, e se fizéssemos desta maneira?”, se eu achar que está bem fazemos da maneira que eles dizem. E com o António é igual. Desde que o trabalho fique bem feito, não sou rigoroso nem digo que têm de fazer como eu mando.
Hoje em dia fazemos uma boa dupla. Eu aprendi a enxertar com o meu pai. Ele fazia o enxerto e eu aconchegava, com a fita. Agora enxerto eu, e o António aconchega. Nós aqui na quinta também vamos fazendo viveiros. Agora estamos a tirar as maçãs e a plantar nogueiras. E fomos nós que fizemos a plantação de raiz. Semeámos a noz, depois enxertámos e plantámos. Passados três anos já está a produzir.
Os enxertos são um trabalho importante e há cada vez menos gente que o sabe fazer. Nós, pelo menos, recebemos telefonemas e pedidos de várias zonas do país. Há pessoas que nos ligam para ir fazer 30 enxertos. Eu lá explico que não dá para fazer uma viagem de três horas para fazer meia hora de trabalho…. Mas as pessoas estão disponíveis para pagar, porque não têm ou não conhecem mais quem faça.
Todos os anos, no mês de março, nós vamos para fora, para Coimbra, para Viseu, para viveiristas e para particulares, fazer esses trabalhos de enxertia. Fazemos entre 25 a 30 mil enxertos, só nesse mês. Temos muita experiência, de facto.
Quando vamos para a enxertia trabalhamos dez horas seguidas, para aproveitar o tempo. Uma vez estive em Oliveira do Hospital e fiz quatro mil enxertos em quatro dias. E desses enxertos só falharam 37. Costumo dizer que esses trabalhos que fazemos para fora são o meu subsídio de férias.
Às vezes, quando chegamos aos sítios – e as pessoas não nos conhecem – lá nos dizem: “Então nós fizemos borrego para o almoço, a pensar que eram pessoas com mais idade, e aparecem-nos dois jovens? Vocês gostam de borrego?”. O António não gostava, mas já aprendeu a gostar.
Todos os dias chegamos ao campo às 7h30 e andamos a lidar até às 16h30 ou 17h00, depende do trabalho. No verão começamos ainda mais cedo e terminamos às 14h00, porque depois ninguém aguenta o calor. A ideia é chegar a casa, almoçar e dormir uma sesta, mas quem tem miúdos, como eu, não consegue – eles chegam da escola e não há mais sesta para ninguém.
De resto, aqui na quinta há trabalho para os dois, todos os dias. Aliás, se tivéssemos quatro braços cada um, continuava a haver trabalho para todos. Eu costumo dizer ao António que precisávamos de mais dois como nós – tinham era de ser como nós! Pessoas para trabalhar até se vai arranjando, agora pessoas responsáveis a quem se possa dizer ”faz este serviço” é que já é mais difícil. Normalmente as pessoas só querem chegar ao fim com o dia ganho e com poucas responsabilidades.
Nós aqui temos de estar dispostos a aprender. Todos os dias aprendemos. Das várias alturas do ano, não é a colheita de que mais gosto. É ela que traz o resultado do nosso trabalho, mas é sempre um stress, é preciso arranjar trabalhadores, é preciso saber como vamos escoar o produto. Nesta altura do ano, em que andamos com as podas, é tudo muito mais sossegado.
De todo o trabalho agrícola, e apesar de tanta experiência com a enxertia, o que eu mais gosto de fazer são as podas. Nunca são iguais. Num ano podamos de uma maneira, depois de outra. A formação da árvore vai variando e ela é que nos vai ensinando como a havemos de educar. É desta relação que eu gosto.
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