Herdeiro de três propriedades agrícolas, o rendimento não lhe permite viver em exclusivo da atividade florestal. É maquinista da CP, vai trabalhar todos os dias para Lisboa, mas os turnos livres e as folgas são todas passadas a fazer manutenção aos sobreiros e aos pinheiros. “Galinha do mato, gosta é de estar no mato”. Eis o seu testemunho.
“Trato os sobreiros como se fossem membros da família”
Chamo-me Ângelo Mesquita, sou eletricista na CP e proprietário de três hectares de floresta aqui na zona de Coruche. Vivo em Almeirim, na terra onde nasceu o meu pai, mas continuo a cuidar destes terrenos que pertenceram ao meu avô materno. O meu pai e a minha mãe tomaram conta destas terras durante muitos anos, e eu cresci no meio disto.
Há nove anos o meu pai faleceu. E eu, como filho único, fiquei encarregue de tratar das herdades. São três: uma na Lamorosa, outra na Azerveira e outra em Martingil. Tudo em Coruche. Eu trabalho em Lisboa, vou para lá todos os dias; mas nos meus tempos livres, feriados e fins de semana é para aqui que eu venho. O tempo em que não vou para o café, venho para aqui – limpar um sobreiro, plantar outros, vigiar os pinheiros, limpar o mato. Tento trazer isto em condições, como se fosse a minha casa.
A floresta dá muito trabalho. A cortiça dá muito trabalho. Dá muito mesmo. Só sai de nove em nove anos, mas nós todos anos temos de vir aqui tirar um galho ou alguma pernada que seca, e cortar o mato e guardar o terreno. Se durante nove anos não fosse tratado, chegavam aqui para tirar a cortiça e não se conseguia andar com tanto mato.
Eu tenho um trator e vou fazendo a limpeza. Não se faz tudo num dia. Vai-se fazendo. A vantagem é que eu trabalho por turnos. E, quando estou a fazer a tarde, aproveito as manhãs para vir para aqui. Dá para conciliar as coisas.
O “Cabeça de Ferro” [José Alves] diz que eu trato estes sobreiros como se fossem membros da minha família. E é verdade, trato mesmo.
Só é pena o tempo não ajudar. Se tivesse chovido, a cortiça estava diferente, saía mais pesada. E as árvores não iam sofrer tanto quando lhes tiram a cortiça… Mas pronto, é o que temos.
A cortiça está muito boa, mas poderia estar um bocadinho mais cheia, se tivesse mais humidade. Isso dava-lhe mais peso, e a mim, que a vendo, dava-me maior rentabilidade. Está bom para quem compra, porque a qualidade da cortiça está lá.
Eu vendo a cortiça à arroba. Podia tirá-la à minha conta – eu também sou um curioso e aprendi a tirar. Podia ser eu a arranjar um rancho, a pagar aos tiradores e depois vender a cortiça ao senhor Zé. Mas o negócio que eu faço com ele é para que seja ele a fornecer a mão de obra. Ele trata de tudo. E eu só vou assistir à balança, para ver o peso… e o preço.
Já era assim que o meu pai fazia há mais de 20 anos. Há aí muita gente a querer comprar a cortiça, mas enquanto o “cabeça de ferro” puder eu vou trabalhando com ele. Este pode ser o último ano, que ele já vai tendo alguma idade – e, entretanto, o filho dele morreu.
Mas nós continuamos a fazer negócio e comemos um borrego à conta disso. Ele fazia esse contrato com o meu pai, e eu cheguei a fazer o mesmo contrato com o filho. Agora não está cá o meu pai nem está o filho dele, mas os acordos mantêm-se.
Nunca tive vontade de me mudar para Lisboa, mesmo trabalhando lá e indo para lá todos os dias. Apanho o comboio, vou e venho. Galinha do campo, quer é campo. Vivo em Paços Negros, uma aldeia a dez quilómetros daqui, que pertence a Almeirim e é conhecida como a terra do morango e do pêssego.
Tenho um filho que vai fazer 5 anos e sou um apaixonado por motas – gosto de dar umas voltinhas na minha mota de alta cilindrada, ir a algumas concentrações. É esse o meu hobby.
O ano em que se tira cortiça é um ano especial para nós. É preciso esperar nove anos para poder ter rentabilidade. É um ano bom para o primeiro-ministro que esteja no governo nessa altura. Porque nós depois temos de pagar impostos. Recebemos, mas temos de pagar impostos. O que recebemos é só um miminho.
O que eu recebo não me permite viver só disto, tenho de ter um emprego. Mas o que consigo com a floresta é uma grande ajuda. Dá sempre para comprar um carro, uma carrinha, um trator, enfim… é dinheiro que vamos precisar para depois andar aqui mais nove anos.
O montado é uma floresta especial. Costuma-se dizer que quem planta um sobreiro já não lhe tira a cortiça. É plantar para os filhos e netos.
Eu também planto sobreiros. Chego ao pé de um sobreiro que sei que dá boa cortiça, apanho as boletas e vou enterrá-los. Algumas até germinam, mas vem o verão e lá se vai quase tudo. Em 100, espaçam dez ou 15. Mas a gente tem que ir insistindo, como diz o outro. É importante insistir para isto continuar a crescer. Tal como soube bem receber, tenho de pensar no futuro.
O melhor são os que nascem de geração espontânea – e há muitos assim em Coruche, por isso é uma terra tão boa para a cortiça. Tenho uma zona com 3 ou 4 hectares, onde não se plantou um único sobreiro. Tudo espontâneo. Inclusivamente, o meu pai e a minha mãe arrancaram muitos deles. Estavam tão concentrados em cima dos outros que eles tiveram que os arrancar… a terra aqui é excelente.
Eu, na verdade, tenho arrancado mais pinheiros que sobreiros. Alguns pinheiros que estavam a fazer sombra aos sobreiros, e onde eu tenho medo de um dia perder a cabeça por chegar aqui e ver alguém em cima deles a roubar-me as pinhas. As pinhas, e os pinhões, valem muito dinheiro, e há quem ande nessa vida e roubar os outros. Preferi arrancá-lo a ter de passar por essa situação.
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Com apenas 26 anos de idade, Camille Hoyas deixou os resorts de luxo do Club Mediterranée onde trabalhava para ajudar a construir um projeto hoteleiro nas planícies de Santana do Mato. A propriedade de 12 hectares, comprada pelos pais para trocarem a cinzenta Bélgica pela soalheira Coruche, é hoje a morada da jovem animadora turística que, com o namorado francês, assegura a receção dos hóspedes da quinta Do Água Boa.