Coruche é um dos maiores concelhos portugueses e aquele que tem maior área coberta por montado de sobro. Em aldeias como Azerveira, Santana do Mato ou Lamarosa estão os ranchos de tiradores, onde se perpetuam os saberes ancestrais e os mestres ensinam, campanha a campanha, sobreiro a sobreiro, um ofício que se mantém manual e tradicional. Há trabalho na floresta o ano todo, mas a festa faz-se na época da tirada da cortiça, atividade que faz parte do inventário do Património Cultural Imaterial Nacional.
José Custódio Alves, 70 anos, e Alice Rosa, 65 anos, estão à porta do café-restaurante O Cortiço, no centro da freguesia de São José da Lamarosa, onde decidiram construir casa e vida juntos há já 45 anos.
Estão ambos sentados dentro da carrinha todo-o-terreno que já perdeu conta aos quilómetros percorridos nos montados do concelho de Coruche, onde ambos nasceram e escolheram continuar a viver.
O compasso de espera é o mesmo que fazem há décadas numa das alturas do ano de que mais gostam: o início do verão, quando ocorrem as empreitadas da tirada de cortiça.
Ele, que todos conhecem como “Cabeça de Ferro“, é um dos principais empreiteiros agrícolas do concelho – aliás, da região. Nesse 17 de junho, dia em que cumpre 70 anos de vida, tem cinco ranchos de tiradores organizados à sua conta. Ela é o braço direito e uma espécie de faz tudo, sempre com voz de comando e firmeza nas palavras.
À porta do café começam a juntar-se dezenas de pessoas. José Alves e Alice Rosa nem saem do carro. “Mas isso é só porque as minhas pernas já não são o que eram. Já não consigo estar muito tempo de pé, agora corro o mais possível sentado”, explica o “Cabeça de Ferro”.
As palavras que quer deixar ao seu rancho de tiradores vai dá-las depois, quando já todos estiverem no montado, na chamada copa, o local que o capataz, Jerónimo Constâncio, vai escolher na propriedade de Ângelo Mesquita para o rancho se instalar.
É lá que se encontram todos, uns largos minutos antes das 8h00, no topo de um sobreiral imponente, de árvores frondosas, orografia desafiante e caminhos desmatados. Vão fazer um horário “normal” – ferrar às 8h00, despegar às 17h00, com intervalo para almoço entre as 12h00 e as 13h15, uma hora para almoço, 15 minutos para a “amola”, o tempo que os tiradores de cortiça usam para voltar a afiar as suas machadas. O ato de afiar, de amolar a lâmina, faz parte do ritual dos tiradores.
Com todo o rancho reunido na copa, é hora de José Alves sair da carrinha e dirigir as primeiras palavras aos seus tiradores, alguns trabalham com ele há mais de 20 anos.
“Hoje vamos ter a companhia de jornalistas. É gente que já viu cortiça na fábrica e em todo o lado, mas que não conhece a floresta. E tiveram a sorte de vir logo para uma boa floresta. Esta é uma floresta que o dono trata como se fosse família. E nós temos que tratá-la também como se fosse a nossa família. Porque isto é o futuro de nós todos”, começou José Alves.
“Cabeça de Ferro” explica, depois, porque está com esta preleção. “Sei de onde vocês estão a vir. A floresta não estava assim tão bem tratada, e quando assim é o tirador não tem o mesmo entusiasmo. Mas não tragam a balda que podem ter sentido lá para aqui. Estou a avisar-vos, é uma boa floresta que aqui está. Façam o vosso melhor, e tratem a floresta como ela tem de ser tratada. Não estamos aqui para receber elogios, mas para trabalhar correto. Nunca se esqueçam, aqui é o princípio de tudo. Aqui é o princípio do futuro de todos nós”, insiste.
O dono da floresta, Ângelo Mesquita, estava a ouvi-lo. O capataz, Jerónimo Constâncio, estava a ouvi-lo. Nessa manhã, que acordou enevoada, todos os tiradores de cortiça ouviam “Cabeça de Ferro” com toda a atenção. O mesmo fizeram as mulheres, molheiras, a tratorista, que conduz o trator e faz a rechega. “Aqui é o princípio do futuro de todos nós”.
As palavras pareciam ecoar pelo montado, tal a firmeza e quase solenidade com que foram ditas. E sentidas. O capataz dá ordem de comando: “malta, vamos lá à vida”. Ia começar a tiradia.
Cada um dos homens sabe o que tem de fazer. Espalham-se, em parelhas, pelo montado. Camaradas que são, habituados que estão, não precisam de grandes conversas nem há hesitações. “Cabeça de Ferro” falava de futuro, e Eduardo “Encarnado”, 36 anos, 21 a tirar cortiça, não o desdenha. Mas antes de ser futuro, a floresta foi o seu passado e é, sobretudo, o seu presente.
Começou a tirar cortiça ensinado pelo pai, João Santos, atualmente com 58 anos, e que anda por ali mesmo, naquele mesmo rancho, também de machada na mão e escada ao ombro. Agora, Eduardo faz parceria com um cunhado, António José Falcão [“Chamem-me Tó Zé”], que começou a tirar cortiça há já cinco anos.
Andou uns anos a molheiro – a recolher junto das árvores a cortiça desprendida pelos tiradores, e a fazer molhos para cima de um trator – porque todos começam assim, pelo chão. Só depois pegam na machada, aprendem a desferir os golpes, atrevem-se a tirar a roupa a um sobreiro que demorou nove anos a se vestir.
“O meu pai ensinou-me a olhar para o sobreiro e a ver o que é que temos de fazer. Os sobreiros não são todos iguais. Mas eu não devo ser capaz de ensinar como o meu pai me ensinou. Ando há cinco anos com o meu cunhado, e não sou capaz de lhe ensinar coisa nenhuma”, atira, a sorrir. Eduardo está sempre a brincar: “Agora vai ter de adivinhar, se é o professor que é mau, ou se é o aluno que é franco”. E dá uma gargalhada.
A boa disposição reina entre os tiradores. E, diz Eduardo e concorda Tó Ze, “a camaradagem que há entre o grupo é o melhor que levamos da vida”.
Tó Zé Falcão confessa que no dia antes de começar a tirada da cortiça nem consegue “dormir em condições”. “Por causa da camaradagem que aqui se vive, e por causa do trabalho em si. Trabalho para o ‘Cabeça de Ferro’ há dez anos, e só comecei a tirar cortiça há quase seis.
Ando a trabalhar na floresta o ano todo, seja na lenha, nas pinhas ou a limpar mato. Mas esta é a altura do ano de que eu mais gosto. Para nós, tiradores, é uma altura mesmo especial”, diz Falcão.
Tiragem da Cortiça, Património Cultural Imaterial
É especial para os tiradores, para as suas famílias, para toda a comunidade. Desde novembro de 2021 que a tiragem da cortiça no concelho de Coruche é oficialmente reconhecida como Património Cultural Imaterial Nacional.
A iniciativa foi da Câmara Municipal de Coruche, que arrancou com o processo de classificação em 2018, mas a culpa de tal reconhecimento é mesmo de homens como Eduardo e o pai, como José Alves e como Jerónimo Constâncio, para falar só de alguns tiradores de São José da Lamarosa.
Mas a esta freguesa juntam-se outras três – Santana do Mato, Branca e Couço – e só assim se fará justiça aos locais onde a prática da tiragem cortiça está mais ativa em todo o concelho de Coruche. Este que é um dos maiores municípios portugueses em área, tem mais de metade do seu território coberto por floresta. E o sobreiro é a espécie florestal predominante.
A economia do concelho de Coruche está muito assente na atividade agrícola e florestal. Fora da vila, e sede do concelho, os residentes vão-se espalhando por povoamentos algo dispersos, permitindo-se algumas concentrações nas sedes de freguesia.
Entre Santana do Mato, uma das freguesias a sul do concelho, onde, por exemplo, a belga Camille Hoyas escolheu viver para dar corpo a um projeto de família na área do turismo – a Quinta Do Água Boa – e São José da Lamarosa, onde vive José Alves, ou a Azerveira, onde vive Fábio Gabriel, um serralheiro de 35 anos que se tornou no mais jovem artesão a fazer as tradicionais machadas corticeiras, as distâncias ultrapassam os 30 quilómetros.
Nos quatro meses do ano em que se pode fazer a atividade da extração de cortiça, estes montados ganham uma vida inusitada, com a visita dos ranchos, a passagem dos tratores, a orquestra das machadas.
Tantos décadas depois, tirar cortiça continua a ser um trabalho altamente especializado, a transmissão destes saberes continua a fazer-se de forma oral, e esta atividade singular continua a ser executada de forma tradicional. O ofício é ensinado no campo, campanha a campanha, sobreiro a sobreiro.
Silvestre tem 70 anos, e a primeira vez que aprendeu a tirar cortiça foi em 1975. Passados 47 anos desde a primeira vez que deu o gosto ao braço e desferiu um golpe de machada na casca de um sobreiro, pouca coisa mudou.
“A maneira de cortar a cortiça, a técnica, é sempre a mesma. É e terá de ser”. Silvestre aprendeu com um irmão bem mais velho, e que deixou de tirar cortiça há pouco tempo. “Este é um trabalho duro. Continuo a fazê-lo, e gosto de o fazer. Mas é um trabalho duro”, avisa.
Não é pela força que tem de fazer na machada a cada golpe. É pelas muitas vezes que tem de fazer essa força, ao longo do dia. E é pelo calor que se sente, pela sombra que às vezes é pouca.
Mas, diz Silvestre, não é só pelo dinheiro que se ganha em quatro meses que nunca deixou de tirar cortiça – por ser um trabalho altamente especializado, o trabalho do atirador de cortiça é um dos trabalhos agrícolas mais bem remunerados, a rondar os 100 euros por dia -, mesmo que tenha apostado em oferecer transporte de taxi na Lamarosa durante 12 anos.
O que o continua a fascinar é “poder olhar para um sobreiro bem encarado, encontrá-lo lisinho e sentir a cortiça a sair”.
Nos últimos anos o seu parceiro tem sido Luís Conceição, tirador há 17 anos. Luís nasceu e cresceu em Lisboa, mas veio novo para a Lamarosa, “atrás do pai”. A sintonia entre os dois vê-se pelo trabalho sincronizado. Um de cada lado do tronco da árvore, frente a frente. Começa Silvestre, dá um primeiro golpe à altura dos 1,20 metros. Seguem-se-lhe vários, certos, sincopados, tronco abaixo, até à base do sobreiro. “Os tiradores chamam-lhe calço”, explica.
Do outro lado do tronco, Luís repete o procedimento, ao mesmo tempo, e com a sua machada vai desferindo vários golpes na casca da árvore, até desenhar uma linha até ao chão. Cada qual tem a sua machada – “não é propriamente de estimação, não há machadas a durar a vida toda”, diz Luís.
Mas, se as machadas estiverem todas ao monte, certo é que cada atirador saberá reconhecer a sua. Pela lâmina, pela estrutura, pelo cabo. Não há duas iguais – mesmo que se use o mesmo molde, e o processo de fabrico seja sempre o mesmo, como demonstrará Fábio Gabriel na sua oficina na Azerveira.
Depois de traçado o corte em ambos os lados do tronco e de estar definido o tamanho da prancha de cortiça a sair, Silvestre de um lado e Luís do outro vão usar o cabo da machada para separar a prancha do entrecasco da árvore. Quanto maiores forem as pranchas e mais perfeitos forem os canudos maior será o valor comercial. A perícia do tirador de cortiça faz toda a diferença neste tipo de operação.
Jerónimo Constâncio, que assume o papel de mestre e de capataz neste rancho, explica que não é muito fácil recrutar novos tiradores. Porque a tiradia da cortiça concentra-se em três ou quatro meses, e toda a gente precisa de garantir trabalho no resto do ano. Nos estaleiros de “Cabeça de Ferro” trabalha-se com cortiça e com pinhas o ano todo. José Alves tira cortiça à falca, e vende a lenha para os fogões de sala, ou para carvão.
Em Santana do Mato há muitas empresas a fazer carvão, como aquela em que trabalhou António Matias nos últimos anos. Com 82 anos, Matias é, por estes dias, a última pessoa de Coruche que sabe tirar cortiça à falca com recurso a uma enxó. E se é dos últimos a saber fazê-lo, é porque hoje em dia já há máquinas para retirar a cortiça desses pedaços velhos de madeira, pedaços que não trazem preocupação sobre a integridade do sobreiro nem sobre o futuro da floresta – “Aqui é o princípio do futuro de todos nós”. As palavras de “Cabeça de Ferro” continuam a ecoar em todas as conversas.
Por o trabalho ser sazonal, isto é, concentrado em poucos meses do ano, e por ser muito – só em Coruche está 7% da produção de toda a cortiça nacional -, Constâncio explica que foi necessário recorrer a estrangeiros para assegurar as tiradias no tempo certo.
Hoje em dia há ranchos compostos só por imigrantes oriundos dos países de leste. Nos ranchos de “Cabeça de Ferro” andam tiradores de várias nacionalidades. E, à conta da cortiça e do trabalho de tiradores, a aldeia de Lamarosa e o concelho de Coruche ganhou habitantes da Moldávia.
Como Alex Modria, que tem 55 anos e chegou pela primeira vez a Portugal há 21. Começou nos trabalhos de construção civil numa obra em Coimbra e um acaso trouxe-o à floresta, e à cortiça. “Percebi que prefiro a floresta do que o cimento”, explica num português esforçado, mas compreensível.
Aprender português foi tão ou mais difícil do que aprender a tirar cortiça. Mas, agora que sabe, dificilmente quer fazer outra coisa. Já é tirador há 18 anos. A mulher, enfermeira, continua a viver em Orsei, na Moldávia, onde ganha 230 euros por mês.
Os filhos, um rapaz de 29 anos e uma rapariga de 30, que já está casada, vivem ambos em Pamplona, em Espanha. “Mas eu gosto é de viver em Coruche. Trabalho no verão e vou visitá-los no inverno”, explica.
Este ano está a fazer esgada com Oleg, romeno. “Não sei falar romeno e ele não sabe falar moldavo, mas a gente entende-se”, diz Alex. Afinal, a linguagem do trabalho parece ser universal. E a da cortiça também. Não há línguas a fazer divisões. Nem etnias. Vando Malatoi, de 22 anos, e o irmão, Leonardo, de 31, também andam de machada na mão, a trepar aos sobreiros e a despi-los de cortiça.
“Fomos os primeiros ciganos a ser tiradores”, diz Vando, orgulhoso, que responde às provocações e faz outras tantas aos restantes membros do rancho. “A brincar é que a gente se entende”, remata.
As brincadeiras e as provocações fazem-se, sobretudo, no intervalo para almoço ou para a amola. É aí que o rancho está todo junto e o convívio se alarga a todo o grupo. E que os tiradores, todos homens, se juntam às mulheres, quase todas molheiras.
São elas quem recolhe junto de cada sobreiro as várias pranchas de cortiça que hão-de ser empilhadas num trator, dali para um camião, e do camião para um armazém ou estaleiro onde a cortiça ficará a repousar alguns meses.
Não há mulheres tiradoras, mas há mulheres tratoristas: Emília Evangelista tem 64 anos e trabalha na tirada da cortiça há mais de 40 anos. Só com com “Cabeça de Ferro” está já há 22. Ele dá-lhe trabalho o ano todo, mas é quando tem de andar com o trator no meio do montado que Emília mais gosta de passar os seus dias de trabalho.
As mulheres não pegam na machada. Nem se atrevem a experimentar, ao que parece. Dizem-lhes que é um trabalho de homens, um trabalho fisicamente exigente. Mas elas fazem um trabalho igualmente duro. Elisabete Ferreira veio da vila de Coruche para a aldeia da Lamarosa para vender pão.
Ficou viúva aos 32 anos, com três filhas nos braços. Primeiro com uma padaria, depois com uma florista, diz que Alice Rosa e “Cabeça de Ferro” foram para ela uns segundos pais.
Depois de fechar a florista para ficar a tomar conta dos netos na pandemia, anda agora a trabalhar à jorna, a fazer molhos de cortiça. “Não é que o trabalho seja difícil, mas é um desafio. Mais para mim que estava muito gorda, e pouco habituada a trabalhos que exigiam grande esforço físico”, diz Elisabete, afirmando que o trabalho no campo foi a sua maior dieta.
Da primeira vez que foi apanhar pinhas acabou mais leve 12 quilos. “E agora na cortiça vou emagrecer outra vez”, avisa, entre sorrisos. “Isto até pode ser um desafio, mas o importante é a gente gostar daquilo que faz. E eu gosto. Além de gostar muito do trabalho que faço, gosto muito do tio Zé e da tia Alice”.
Foi nas paragens para almoço dos ranchos que Dinis Azevedo, natural de Montargil, um lugar próximo da aldeia de Azerveira, descobriu que tinha talento para, com a sua navalha, fazer pequenas peças em cortiça. Começou por fazer pequenas brincadeiras, entre cochos para beber água e pequenas cestas para arrumar utensílios, e rapidamente começou a receber encomendas das colegas do rancho.
Agora com 78 anos, já afastado das tiradas de cortiça, não se consegue afastar da construção de réplicas de aviões e carroças, estádios de futebol e igrejas, cobras e dinossauros. Enfim, imagens que encontra em revistas e que lhe apetece replicar – nunca vendeu nada a ninguém, mas já foi a todos os programas de televisão.
A cortiça deu-lhe o ganha pão e agora deu-lhe um passatempo. “A peça que mais gostei de fazer foi a do avião usado na travessia do Atlântico pelo Gago Coutinho e o Sacadura Cabral.
Demorei quase um ano a fazê-la”, conta Dinis Azevedo. Desde que ficou viúvo, Dinis dedica ainda mais tempo à oficina instalada junto às suas hortas, no edifício onde antes funcionava um lagar. “Às vezes o trabalho na cortiça não me está a correr bem. E, quando me aborreço, paro, vou para a horta. Depois estou na horta, fica muito calor, aborreço-me, e venho cá para dentro fazer mais uns trabalhinhos na cortiça. E o meu dia é assim”, afiança Dinis Azevedo.
Os relatos de Dinis Azevedo acerca da Azerveira coincidem com os que António Matias faz sobre Santana do Mato. Com seis anos a separá-los, ambos se recordam das jornadas árduas de trabalho nas colheitas dos cereais, das mondas nos campos de arroz, das longas travessias para ir trabalhar.
São histórias de vida semelhantes na infância, adolescência e vida de adultos. Sempre à volta do campo e dos trabalhos agrícolas; a maior parte da vida à volta dos sobreiros. Dinis Azevedo largou as jornadas de trabalho mas não largou a cortiça. António Matias foi obrigado a parar o trabalho, mas agora tem mais tempo e entusiasmo para se dedicar a um outro “amor”: o Rancho Folclórico “Os Camponeses de Santana do Mato”, grupo que frequenta há mais de 30 anos e com o qual já se permitiu fazer grandes viagens de descoberta a França, às Canárias, aos Açores e à madeira. “E as coisas bonitas que há por esse mundo fora!”, suspira Matias, de olhar brilhante a desvendar saudade e emoção.
António Matias trabalhou até aos 82 anos, até um acidente vascular cerebral o deixar com menor mobilidade e o obrigar a pousar a enxó. A enxó é um instrumento de corte usado para tirar cortiça à lenha que tenha resultado do desbaste de alguns sobreiros. Não é instrumento que se vá continuar a usar, como confirma a perplexidade de um jovem tirador de cortiça à chegada de um rancho ao estaleiro de Lino Gonçalves, em Santana do Mato.
A festa que os tiradores e restantes elementos do rancho fizeram a António Matias comprova a popularidade e simpatia do ancião. A surpresa do jovem ao ver a enxó a trabalhar revela o espanto perante o que os seus olhos nunca tinham visto. “Eu ainda só tinha visto tirar a cortiça à falca com máquinas”, admitiu o jovem rapaz.
Matias, que começou a trabalhar aos seis e só parou aos 82, diz que a vida está agora melhor em muitos aspetos. “Tenho agora 84 anos, mas havia de ter agora 20 e saber o que sei hoje. A idade tudo permite”, afirma. O trabalho não é tão duro, mas há mudanças, há moléstias, há surpresas.
“O tempo este ano vai tão seco, não tem chovido, que alguns sobreiros nem ganharam folhas. Uns vestiram-se, mas outros já nem se vestiram, e quando se vestiram já era tarde para a cortiça dar alguma coisa. O tempo vai estranho. Agora até nos pinheiros há moléstia”, repara.
José Custódio Alves, o “Cabeça de Ferro”, vai continuar a fazer pedagogia sempre que tiver um rancho de tiradores pela frente. O montado é a casa dos sobreiros e os sobreiros devem ser tratados como família. Afinal, a floresta é onde tudo começa.
“É o princípio do futuro de todos nós”.
E em Coruche estão todos muito atentos a isso.
Veja também o guia prático com o que fazer em Coruche.
Mais sobre Coruche
O que fazer em Coruche (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Coruche, distrito de Santarém. Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, mosteiros e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
José Alves, o empreiteiro florestal
José Alves tem 70 anos de vida e 50 deles dedicados à floresta. É um dos maiores empreiteiros florestais do país e um reconhecido empresário do setor, tanto na pinha como na cortiça. Vende matéria-prima para vários países do mundo, e nunca quis sair da sua terra natal, São José da Lamarosa, em Coruche. Gosta que lhe chamem “Cabeça de Ferro”.
Ângelo Mesquita, o proprietário
Herdeiro de três propriedades agrícolas, o rendimento não lhe permite viver em exclusivo da atividade florestal. É maquinista da CP, vai trabalhar todos os dias para Lisboa, mas os turnos livres e as folgas são todas passadas a fazer manutenção aos sobreiros e aos pinheiros. “Galinha do mato, gosta é de estar no mato”.
Fábio Gabriel, o construtor de machadas
Andava à procura de comprar uma machada nova, e acabou por comprar todo o espólio de um dos mais conhecidos fabricantes da machada corticeira. Com 36 anos, nado e criado no meio de tiradores de cortiça e de homens da floresta, Fábio Gabriel é hoje o mais novo serralheiro a levar à forja as reconhecidas machadas montargileiras.
António Matias, o tirador de cortiça
Começou a trabalhar com seis anos de idade e só parou aos 82. Foi preciso um AVC para António Matias pousar as machadas corticeiras e as enxós com que toda a vida tirou cortiça – é dos poucos tiradores que ainda sabe usar a enxó para tirar cortiça aos galhos velhos dos sobreiros. Já fez de tudo na sua longa vida de agricultor – e ainda faz parte do grupo Os Camponeses, de Santana do Mato.
Jerónimo Constâncio, o capataz
Aprendeu a tirar cortiça aos 15 anos e, desde então, é na floresta que fez toda a sua vida profissional. Já conta 58 anos de idade e assume-se como o capataz, aquele que dá voz de comando e organização aos ranchos de tiradores. Por viver no concelho onde há a melhor cortiça dos mundo, Jerónimo Constâncio não quer ir para mais lado nenhum.
Camille Hoyois, a entusiasta
Com apenas 26 anos de idade, Camille Hoyas deixou os resorts de luxo do Club Mediterranée onde trabalhava para ajudar a construir um projeto hoteleiro nas planícies de Santana do Mato. A propriedade de 12 hectares, comprada pelos pais para trocarem a cinzenta Bélgica pela soalheira Coruche, é hoje a morada da jovem animadora turística que, com o namorado francês, assegura a receção dos hóspedes da quinta Do Água Boa.