Começou a trabalhar com seis anos de idade e só parou aos 82. Foi preciso um AVC para António Matias pousar as machadas corticeiras e as enxós com que toda a vida tirou cortiça – é dos poucos tiradores que ainda sabe usar a enxó para tirar cortiça aos galhos velhos dos sobreiros. Já fez de tudo na sua longa vida de agricultor mas, se pousou os objetos de trabalho, não tenciona pousar o cartachinho – o “instrumento musical” que toca no grupo Os Camponeses, de Santana do Mato. Eis o seu testemunho.
“Tenho 84 anos, mas havia de ter 20 e saber o que sei hoje”
Chamo-me António Matias, tenho 84 anos e sou tirador de cortiça. Tiro cortiça na árvore com a machada; e tiro cortiça à falca com a enxó. É isso que eu faço e o que eu sei fazer. E gosto.
Nasci em Tarrafarim, aqui em Coruche, bem pertinho da ribeira que vai desaguar ao rio Sorraia. Aquilo era um monte cheio de gente, mas agora não mora lá ninguém. E as casas já lá não estão, foram caindo, ou derrubaram-nas, nem sei. A casa onde morava o meu pai também caiu. No tempo dos meus avós aquela casa chegou a ser uma moagem. Tinham um moinho de fazer farinha, aproveitavam a força da água que passava debaixo da casa.
O meu pai ficou naquela casa, e lá nascemos sete irmão. Três já morreram, mas ainda tenho vivos duas irmãs e um irmão. Vim viver para Santana do Mato quando me juntei com a minha mulher. Conheci-a quando andava a trabalhar, ela e eu, em Ferrões. Hoje um rapaz anda com uma rapariga, aceita namoro de manhã e à tarde vão-se embora os dois. Dantes não era assim! Namorava-se à porta, e a velha estava ao lado do lume, de inverno, e tinha um espelho para vigiar… Eram outros tempos.
Começávamos a trabalhar muito novos. Na cortiça comecei com 14 anos, mas antes disso já tinha andado no arroz. Semeei arroz, semeei trigo, semeei milho, semeei cevada, centeio, adubava… Não havia máquinas para nada, andávamos lá nós, a fazer tudo à mão. E aprendíamos a fazer tudo. Eu mondei e ceifei arroz, mas também ceifei cereais de pragana. Tudo era feito com molhos diferentes; quando era para ir para a eira não era tudo feito com o mesmo feitio.
Cada qual tinha uma atilha. Chamava-lhe a gente um encelho, a gente fazia de uma maneira e de outra. O de centeio era de uma maneira, o de cevada era de outra, o trigo era de outra… era tudo assim. O arroz era a mesma coisa. Nem toda a gente sabia ceifar arroz. Porque o arroz é um género que a gente a ceifar não pode dar balanço. Se dá balanço, a semente cai, fica só com a palha na mão. Fica lá muita coisa. Tinha que ser com muito cuidado para fazer aquele trabalho todo.
Enfim, ao longo da minha vida fiz muitos trabalhos no campo, e gostei de todos os trabalhos. Mas posso dizer-lhe que o que gostei menos foi o de andar a apanhar pinhas. Hoje há escadas que chegam até lá em cima. Mas antes as escadas de madeira ficavam só a meio do tronco do pinheiro, e no resto tinha de ser abraçado. Era difícil.
Fiz de tudo na vida. Engordei gado. Uma vez, o rebanho pirou-se. Era gaiato pequeno, tinha seis anos e era para ganhar cinco tostões! Quando andei a engordar varas de porcos, ali para o Corrinheiro, quase à borda da Ribeira, levantávamo-nos à meia noite para ir levar os porcos aos talhões, ficavam ali umas horas a comer, depois levava-os para onde havia água… e quando os porcos começam a andar na engorda… – Jesus, os porcos correm tudo!
Trabalhei quase sempre aqui pela região, mas às vezes saíamos para ranchos que andavam a mondar arroz ou nas cavas. Depois da monda estávamos oito a 15 dias em casa, e seguíamos logo para as ceifas. Podia ser para a zona de Alcácer do Sal, podia ser para a zona de Vila Franca. Andávamos nessa vida, assim. E nós ficávamos num barracão qualquer. Hoje é que a malta, mesmo que ande a 100 ou 200km, prefere voltar para casa. Nós ficávamos. Uns em cima dos outros, e tal, mas ao fim do dia ainda havia quem levava um senhor que dava uns toques e havia uma bailarada na rua do quartel. Então era uma festa, era uma alegria.
Nesse tempo vinha a malta lá do norte, vinham arrancar mato para os carregais, fazer o que calhava, e chamávamos-lhe as galegas. Eram tão galegos como a gente, era a mesma coisa, mas tinham aquele apelido. E vinham para aí, faziam uns bailes e a malta ia para lá à noite, bailar com elas, no quartel delas. Era uma festa. Tenho saudades desses tempos, tenho. Agora tenho 84 anos, mas havia de ter 20 e saber o que sei hoje. A idade tudo permite.
Mas eu andei a trabalhar até aos 82 anos! Comecei aos seis e só parei aos 82. A minha mulher teve doença de Alzheimer. E eu para equilibrar as coisas, tive de trabalhar. Ela acabou por morrer com aquela doença, em Santarém. E eu também só parei porque tive um AVC.
Estive uma quantidade de tempo no Hospital de Santarém, fui muito bem tratado. Apanhei pessoas muito boas, tanto médicos como enfermeiros. Há gente que se queixa, mas eu não tive razão para me queixar. Foi tudo do melhorio. Foi só por causa desse AVC que eu parei de trabalhar.
Eu sei que já tinha idade para estar descansado em casa, mas a gente enquanto se puder por de pé tem de ver se é capaz de se desenrascar. Nunca fiquei a dever nada a ninguém. Ainda hoje, se não fosse isso, ainda andava aqui a tirar cortiça. Tenho um patrão que é como uma pessoa de família. Nem todos da nossa família às vezes são como ele é. Já o pai dele, que era da minha idade, era a mesma coisa. É gente boa.
Nesta empresa há trabalho o ano todo, há sempre que fazer aqui na Herdade do Tarrafeiro. E eu já fiz de tudo nesta empresa. O Lino agora até traz mais gente, porque anda muita malta a tirar a cortiça abadia. Outros trabalham nos fornos, onde se faz o carvão. Com a máquina deitam lenha lá para dentro, fecha-se a placa em cima, leva terra, puxa-se o fogo do lado de trás, deixa-se a porta um bocadinho aberta para apanhar o ar, e a lenha fica a cozer até ser carvão.
Antes tirava-se toda a cortiça no mato. No primeiro ano em que se tira a cortiça, chama-se cortiça branca, virgem. Passado nove anos de ser tirada; tira-se outra vez e chama-se cortiça secundeira. Depois ao fim de outros nove anos é que já é cortiça natural, é amadia. Há por isso cortiça de muitas categorias.
Quando o chaparro era preguento, a cortiça não era boa, no fim da tirada era marcado e abatido. Agora não. Só se cortam as árvores secas, que já não tem proveito nenhum. E a falca já não é tirada no mato. Carrega-se para o estaleiros e é tirada com a enxó. Sou dos últimos que ainda sabe trabalhar. Chegamos a ser muitos, mas agora faz-se tudo com máquinas.
O meu filho – eu só tenho um filho – ficou sem a mão direita numa dessas máquinas. Agora não pode fazer mais nada – está a trabalhar nos fogos, nos trabalhos de vigia. Não é casado, não tem filhos, por isso não tenho netos. Temo-nos um ao outro.
Gosto muito de viver aqui em Santana do Mato. Temos um grupo folclórico, onde eu ando há mais de 30 anos. Eu não sei dançar, mas toco cartachinho, é um aparelho pequenino, feito de madeira e que faz o acompanhamento do acordeão. O meu cartachinho fui eu que fiz. E vai comigo para todo o lado.
Somos 40 a 50 pessoas e à conta do rancho já fizemos muitas viagens para longe. Já fomos às Canárias, aos Açores, à Madeira. O primeiro sítio onde fomos foi para Bordéus, em França. Foi tão rica essa viagem, uma coisa linda, linda.
Fazia-nos muita falta o rancho. Parou tudo por causa da pandemia, mas agora os ensaios vão recomeçar, finalmente. Dá muito trabalho, é verdade. Mas estes dois anos foi uma falta enorme que me fez.
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