José Alves tem 70 anos de vida e 50 deles dedicados à floresta. É um dos maiores empreiteiros florestais do país e um reconhecido empresário do setor, tanto na pinha como na cortiça. Vende matéria-prima para vários países do mundo, e nunca quis sair da sua terra natal, São José da Lamarosa, em Coruche. Gosta que lhe chamem “Cabeça de Ferro”. Eis o seu testemunho.
“Nunca sobrou cortiça no mato, nem nunca faltou na fábrica”
Chamo-me José Alves, nasci no dia 17 de junho de 1952, por isso acabei de fazer 70 anos. Nasci em Peta, um lugar pertinho de São José da Lamarosa, a terra onde todos me conhecem. Aliás, eu sou conhecido em Portugal e em Espanha, dou-me com gente rica e gente pobre, com estrangeiros e ciganos, com adultos e crianças. Falo para todos e sei estar com todos. Toda a gente me conhece por “Cabeça de Ferro”, e é por esse nome que eu gosto de ser chamado. Até pela minha mulher.
O nome “Cabeça de Ferro” vem do tempo em que ainda era um rapaz e andava a ceifar trigo. Nesse tempo ainda não havia foices e usavam-se três canudos para ceifar à mão. Eu andava sempre a ceifar ao sol e nunca usava boné. E havia um velho ceifeiro, que eu nunca cheguei a conhecer, e a quem chamavam de Cabeça de Ferro”.
Anos mais tarde, quando me viam a ceifar sem boné começaram a dizer “está aqui outro cabeça de ferro”. E assim ficou. Chamavam-me “Cabeça de Ferro”, por andar a ceifar trigo sem boné. E ficou. Ando nisto há 50 anos. Sempre fui uma pessoa rija. Mas agora estou um bocado cansado das pernas, de vez em quando já tenho de me encostar um bocado.
Tive uma vida boa, mas uma vida sempre cheia de trabalho. Tenho dois irmãos – uma irmã e um irmão – e eu sou o mais novo. Comecei a trabalhar muito novo, primeiro a guardar gado para meu pai, a ceifar trigo; depois a cortar eucaliptos. Cheguei a ficar Serra d’Ossa, a dormir em cima de uma esteva, vinha a casa de 15 em 15 dias. E depois comecei a tirar cortiça para o Grupo Amorim.
Eu tinha 20 anos e quem me ensinou foi um senhor chamado Manuel Brugil. Antigamente havia nos ranchos uma pessoa que ensinava os outros mais a sério. Eu lembro-me que aprendíamos descalços. Na verdade, tínhamos uns sapatos para pôr nos pés quando íamos mudar de um sobreiro para o outro. Mas junto à árvore estávamos descalços. Hoje em dia é proibido, nem sei porquê.
Eu ainda andei 13 anos a tirar cortiça para outros proprietários. Depois, comecei com uma firma pequenina, com um empregado apenas, a comprar umas pinhas, umas cortiças… E depois comecei a gostar disto. Fui crescendo, crescendo, pus pessoas, empregados, e agora a Floripinhas chegou onde chegou. Somos uma das maiores empresas deste setor no país. Fomos crescendo com muito trabalho e sempre com gosto, com qualidade. É muito bonito chegar a estes sítios onde estamos, mas houve muita responsabilidade, muitas noites a pensar de onde vem o camião, para onde vai… Mas quando se gosta tudo é mais fácil.
Ensinei muitos tiradores a trabalhar a cortiça. Todos os anos tento meter um ou dois aprendizes. E antes de lhe pôr a machada na mão, os aprendizes andam no chão, a molheiro. Depois tem uma machadinha e nas horas vagas vão experimentar, e aí logo se vê se têm jeito. Só a pegar na machada a gente vê logo. Um mau tirador pode estragar tudo, e quando parece um “pica-pau” percebo logo, e digo cá para mim: “tu nunca vais longe”.
Mas já ensinei muita gente, e ensino todos. Tenho um moldavo a trabalhar comigo há mais de 20 anos. Devo ter sido o primeiro a ensinar estrangeiros a tirar cortiça. Dez anos depois, já toda a gente o começou a fazer. Há aí ranchos só com romenos, e na verdade eles são muito bons na floresta. Depois lancei ciganos quando ninguém queria. E acho que a pessoa atualizada sou eu. Temos de ensinar toda a gente. Se não, de hoje para amanhã não há tiradores.
O mais importante para mim é trabalhar com as pessoas, ver uma floresta bonita, tratá-la bem, fazer um bom trabalho. O importante é que haja qualidade até no serviço. Não é só na cortiça que tem de haver qualidade. É também no serviço que nós fazemos. Gosto de ver a qualidade.
Hoje em dia a Floripinhas é uma das maiores empresas de exploração florestal do país. Compro cortiça, classifico-a, vendo. Compro a vários proprietários, mas eu próprio, a empresa, já temos 700 a 800 hectares de floresta. Tudo muito bem tratado e arranjado. Podo as árvores, planto pinheiros mansos onde não há espaços de sobreiros, esgalho, enxerto. Gosto muito disto. Para além da cortiça e das pinhas, somos também muito fortes na falca.
Tenho só a quarta classe mas sou um gestor de alto nível. Recebemos a distinção de PME Lider. Sou comprador, vendedor, capataz de rancho, pagador. Não gosto de fazer transferências, nem de andar com multibanco. Eu cá ando é com livros de cheques. O meu filho já morreu, por isso já disse à minha mulher para quando eu partir ela fechar a porta. Não há quem consiga fazer isto. Fiz esta obra do princípio, e quem faz esta obra do princípio sabe o que é que custou, o que sofreu, por isso sabe mantê-la.
Eu conheci a minha mulher, a Alice, no trabalho no campo. Andávamos por aí, trabalhando em herdades, e depois começámos a brigar. Sim, brigamos muito. O teste ao amor é quando se briga. Aqui o amor é duro, mas é puro. Se eu dissesse “ó Alicinha, queres…”, ela respondia “ó meu cabrão, varro-te já os cornos”.
O amor é duro, porque as pessoas duras têm ser duras em tudo. Mas estamos juntos já há 45 anos. Não é por acaso. Temos de saber perceber os nossos bons e maus dias. E depois aceitar que um parece bom, mas afinal é muito ruim. E um parece ruim e às vezes é melhor do que o bom. Percebe? É um bocado assim. Se não houver dureza, não houver verdade, as coisas não funcionam…
A Alice é um parceiro importante na minha empresa. É uma mulher muito trabalhadora e era aqui o capataz, andava com os ranchos na floresta. Ela é difícil de aturar.
Mas isso até é bom porque ela tem muita qualidade e gosto por isto, e se não houver disciplina num rancho nada funciona. Seja onde for, tem de se criar disciplina. Mas desde que nos morreu o filho… a tristeza é maior. Não adianta dizer nada, nem venham dizer-me ‘força’. Não se diz nada. Eu sei muito sobre muita coisa, mas nisto de um filho nos faltar sou um aprendiz.
Mas a vida tem de continuar, e este ano cá estamos a tirar cortiça desde maio. Este ano começamos a 8 de maio, naquelas herdades menos cuidadas. Porque a melhor altura para tirar cortiça é meados de junho. Nessa altura tenho vários ranchos, em várias herdades. Neste momentos (meados de junho) estou no terreno com cinco ranchos ao mesmo tempo.
Cada rancho tem de ter várias esgadas – que é o que chamamos aos dois parceiros que estão à volta da mesma árvore. Para além das 16 a 20 machadas, num rancho há ainda os molheiros, que são homens e mulheres que andam a apanhar a cortiça e a juntá-la nos tratores, a fazer a rechega. Cada rancho leva sempre umas 30 pessoas.
Vai sendo difícil arranjar trabalhadores, mas a verdade é que nunca ficou nada por fazer. Nunca sobrou cortiça no mato nem nunca faltou na fábrica. Comigo, no estaleiro, o ano todo, trabalham cerca de 30 trabalhadores diretos. Mas não são trabalhadores efetivos. São sempre trabalhadores sazonais. Trabalham na cortiça, nas pinhas, a tirar falca, a podar árvores.
Temos de fazer as coisas com qualidade, e lembrar que a floresta é o princípio de tudo. Tudo começa na floresta, é na floresta que temos de ser fortes. Temos de respeitar as árvores como temos de respeitar as pessoas. Temos que deixar para os outros aquilo que encontrámos para nós. É isso.
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Aprendeu a tirar cortiça aos 15 anos e, desde então, é na floresta que fez toda a sua vida profissional. Já conta 58 anos de idade e assume-se como o capataz, aquele que dá voz de comando e organização aos ranchos de tiradores. Por viver no concelho onde há a melhor cortiça dos mundo, Jerónimo Constâncio não quer ir para mais lado nenhum.
Camille Hoyois, a entusiasta
Com apenas 26 anos de idade, Camille Hoyas deixou os resorts de luxo do Club Mediterranée onde trabalhava para ajudar a construir um projeto hoteleiro nas planícies de Santana do Mato. A propriedade de 12 hectares, comprada pelos pais para trocarem a cinzenta Bélgica pela soalheira Coruche, é hoje a morada da jovem animadora turística que, com o namorado francês, assegura a receção dos hóspedes da quinta Do Água Boa.