Aprendeu a tirar cortiça aos 15 anos e, desde então, é na floresta que fez toda a sua vida profissional. Já conta 58 anos de idade e assume-se como o capataz, aquele que dá voz de comando e organização aos ranchos de tiradores. Por viver no concelho onde há a melhor cortiça dos mundo, Jerónimo Constâncio não quer ir para mais lado nenhum. Eis o seu testemunho.
“Em Coruche temos a melhor cortiça do mundo”
Chamo-me Jerónimo Constâncio, tenho 58 anos e ando neste mundo de tirar cortiça desde os 15. Foi um irmão mais velho quem me ensinou este ofício. Ele foi sempre capataz, chegou a andar aqui a comandar os ranchos do nosso cunhado, o “Cabeça de Ferro” [José Alves]. Mas depois comecei eu a ser capataz, e já faço esta função há muito tempo. Gosto muito do que faço, e não quero ir para mais lado nenhum.
Ser capataz é um lugar de muita responsabilidade. É o capataz quem tem de organizar o trabalho de todo o rancho. Em cada rancho temos sempre à volta de 30 pessoas, entre tiradores de cortiça, que funcionam em pares, e a gente da rechega, que faz os molhos e anda nos tratores a levar as cargas. O capataz é quem tem de organizar tudo. Fazer a folha, ver quem veio e quem falta, marcar os eitos – isto é, indicar a direcção em que se vai fazer as tiradas, as pontas em que se começa e acaba -, tratar de tudo para que o serviço ande sempre organizado.
Cada rancho tem normalmente 18 ou 20 tiradores, que andam sempre em pares, e o capataz tem de acompanhar o trabalho de todos. E reparar, por exemplo, se a rechega começa a andar mais atrasada e a não dar vazão a fazer os molhes de cortiça. Nesse caso, tenho de pedir a dois ou três tiradores dos mais novos, daqueles que tiram há menos anos, para se juntarem aos molheiros e irem ajudar à rechega.
Porque nenhuma prancha [de cortiça] pode ficar para trás. Quando chega as cinco da tarde, e o rancho vai embora, não se pode deixar um bocado de cortiça que seja no chão. Porque depois vêm os furtivos de noite, chegam aqui e roubam.
Há quem venha de noite, tiram os poucos sobreiros no corte onde a gente os deixou. Infelizmente temos de estar muito atentos a tudo – até ao ponto em que deixamos o corte, o eito. E o problema não é só o que roubam – que a cortiça tem muito valor, claro – mas é a forma como a tiram. Fazem o serviço de qualquer maneira, esmachadam a árvore toda, escavacam tudo. A preocupação é serem rápidos, para ninguém ver. Fica um a espreitar, outros ficam a roubar. Arrancam e prontos. É uma tristeza que cheguemos a isto. E nós temos de nos preocupar em proteger a floresta.
Tenho muito orgulho naquilo que faço. E acho que as pessoas também gostam de trabalhar comigo, porque eu gosto de ensinar. Gosto de dizer as coisas como elas são, tenho respeito ao trabalho, gosto que haja educação.
Um bom tirador é aquele que não magoa o sobreiro; que sabe traçar a cortiça; que tem gosto naquilo que anda a aprender e naquilo que faz. Porque se não tem gosto naquilo que faz, se andar aqui só para ganhar o dinheiro e ao fim das oito horas de trabalho sabe que tem o dia ganho, esse gajo nunca será um tirador. É apenas um jornaleiro, a ganhar a jorna.
Para se ser um bom tirador é preciso ter vontade de aprender aquilo que a gente lhe ensina – seja um mestre que aqui ande, ou um capataz. Ouvir as explicações, “cortas assim, fazes assado”. E não andar com conversas com os colegas do lado. Se anda a aprender, não pode andar atento às conversas na outra ponta do rancho. Tem de andar atento àquilo que anda a fazer, aquilo que lhe estão a ensinar.
Isto quando se está a aprender é um bocado difícil. Mas depois de se aprender, e com a prática, até parece uma brincadeira. A verdade é que há alguns que podem andar aqui uma vida inteira que nunca aprendem. Tem de haver prática, uma boa prática, senão não sabe e também não aprende. Não vai saber nunca. Mesmo que à frente dele esteja uma boa árvore, um sobreiro de boa qualidade, se não souber cortar nos sítios certos está a estragar a própria cortiça, que é o que nos interessa.
Por isso este é um trabalho de responsabilidade. Para a própria árvore, para o dono da herdade e também para o comprador. Porque a cortiça, se for bem talhada, for bem dividida e as árvores não forem partidas nem esquartejadas, estamos a garantir que haja uma boa qualidade da cortiça. Neste ano e nos seguintes.
Eu já ensinei muita gente a tirar cortiça. Há pelo menos aqui uns oito que se fizeram mesmo muito bons tiradores. Também houve outros a quem eu ensinei e que já faleceram. Mas a maior parte dos tiradores são mais novos do que eu. Agora trago no rancho dois irmãos de etnia cigana, que estão a começar. Aprenderam com uma facilidade louca. Outro bom tirador a quem eu ensinei é o meu sobrinho – o filho do meu irmão mais velho. O meu irmão ensinou-me a mim, e eu ensinei ao filho dele. E o filho fez-se um dos melhores tiradores que há no mundo. Podem encontrar-se para aí uns dez como ele, bons como ele. Mais não há. Em todo o mundo!
Eu trabalho com moldavos, com ciganos, com brasileiros, com romenos. Com quem quer aprender. Porque, para a quantidade de cortiça que temos aqui, com os tiradores que há em Portugal a coisa não se fazia. Se não forem os estrangeiros a dar uma ajuda, não temos hipótese de tirar a cortiça toda. Porque isto é um período específico, que começa nos meados de maio e em fins de julho está terminada.
Tem de ser nesta altura porque, antes de maio, a árvore não a dá e muito depois de julho também já não se pode, que a cortiça começa a partir-se. Começam a ficar bocados de cortiça agarrados aos sobreiros, e ao tirar dá-se cabo das árvores. Assim, neste período temos de ter centenas de pessoas a trabalhar. Ainda na semana passada trazíamos cinco ranchos do tamanho deste a tirar cortiça.
Um dia de trabalho começa às 8h00 – é essa a hora de ferrar. Depois paramos entre as 12h00 e as 13h15. Uma hora para almoço e 15 minutos para a “amola” – é para amolar as machadinhas. Cada atirador trata da sua, de voltar a afiá-la. A indumentária de um tirador é a machada – que está sempre protegida por uma capa que cada um faz -, uma escada e um cantil de água.
Antigamente, tínhamos uma aguadeira em cada rancho. Era uma mulher que, com um púcaro ou um cocho, feito de cortiça, começava a distribuir água numa ponta de um rancho até à outra ponta. E começava tudo de novo – que quando chegava a uma ponta, já o primeiro tinha sede outra vez. Agora acabou-se com isso. Não há aguadeiras, cada um traz o que come e o que bebe.
Cada esgada, isto é, cada dupla de tiradores traz um cantil, mete-se lá dentro água fresca e uns cubos de gelo, e dura o dia todo. Às vezes, e mesmo que a gente diga que devia ser proibido, eles trazem uma cerveja ou duas. Por muito que a gente fale, não conseguimos dominar essa situação. E devia ser proibido porque se há um corte, um aleijamento, quando chegarmos ao seguro e eles virem indícios de álcool no sangue, de quem é a culpa? Quem são os responsáveis? O capataz, que sou eu? O patrão, que é o meu cunhado? Os seguros são um problema grave…
Quando acaba a campanha da cortiça, continua-se a trabalhar no campo. Fazem-se umas vindimas, por exemplo. Na floresta não se pode andar, porque é verão e não se pode andar com motosserras. No máximo, tira-se cortiça à falca no estaleiro. Depois, quando o tempo começar a refrescar, lá para os meados de setembro, começam com as motosserras.
E venho fazer podas de formação, faz-se o abate das árvores secas, para lenhas, para carvão, para essas coisas assim. Depois ali em novembro começa a campanha da pinha. Nós aqui no nosso concelho também temos muita área de pinheiro manso. E para a pinha organizam-se ranchos como na cortiça: uns vão subir à arvore para apanhar a pinha, outros apanham do chão. Na floresta tem-se trabalho todo o ano, todo o ano.
E aqui em Coruche temos as melhores cortiça do mundo, sabia? Há uma faixa desde a Estrada Nacional 114, que é a estrada Coruche-Raposa que vai até Nisa, que tem as melhores cortiças, as que valem mais. É sempre aqui que vêm os grandes compradores à procura, porque é uma cortiça com muita qualidade. É uma faixa com dois milhões de arrobas de cortiça, e em Coruche somos líderes.
Temos tido também gente na Câmara Municipal que se tem entregado muito à floresta e à cortiça. Não é à toa que somos o concelho líder, não é à toa que é organizada em Coruche a Ficor – Feira Internacional da Cortiça. Nós somos reconhecidos pela qualidade. Agora precisamos de mantê-la.
O clima está a mudar e as cortiças estão a perder qualidades. As cortiças boas são cada vez menos, e as cortiças boas é que valem dinheiro. As árvores boas têm de ser cuidadas ao máximo, é preciso evitar picar e partir as cortiças.
Num sobreiro bom, a cortiça abadia pode valer entre 45 a 50 euros a arroba. Se estiver partida aos bocados, da mesma árvore, vale 14 ou 15 euros. Por isso estou sempre a dizer ‘evitem partir!’ Não é só porque o proprietário vai fazer menos dinheiro, é também para não estragarem a árvore, para dar boa cortiça nove anos depois! Temos de pensar no futuro, nos filhos.
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José Alves tem 70 anos de vida e 50 deles dedicados à floresta. É um dos maiores empreiteiros florestais do país e um reconhecido empresário do setor, tanto na pinha como na cortiça. Vende matéria-prima para vários países do mundo, e nunca quis sair da sua terra natal, São José da Lamarosa, em Coruche. Gosta que lhe chamem “Cabeça de Ferro”.
Ângelo Mesquita, o proprietário
Herdeiro de três propriedades agrícolas, o rendimento não lhe permite viver em exclusivo da atividade florestal. É maquinista da CP, vai trabalhar todos os dias para Lisboa, mas os turnos livres e as folgas são todas passadas a fazer manutenção aos sobreiros e aos pinheiros. “Galinha do mato, gosta é de estar no mato”.
Fábio Gabriel, o construtor de machadas
Andava à procura de comprar uma machada nova, e acabou por comprar todo o espólio de um dos mais conhecidos fabricantes da machada corticeira. Com 36 anos, nado e criado no meio de tiradores de cortiça e de homens da floresta, Fábio Gabriel é hoje o mais novo serralheiro a levar à forja as reconhecidas machadas montargileiras.
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Camille Hoyois, a entusiasta
Com apenas 26 anos de idade, Camille Hoyas deixou os resorts de luxo do Club Mediterranée onde trabalhava para ajudar a construir um projeto hoteleiro nas planícies de Santana do Mato. A propriedade de 12 hectares, comprada pelos pais para trocarem a cinzenta Bélgica pela soalheira Coruche, é hoje a morada da jovem animadora turística que, com o namorado francês, assegura a receção dos hóspedes da quinta Do Água Boa.