Andava à procura de comprar uma machada nova, e acabou por comprar todo o espólio de um dos mais conhecidos fabricantes da machada corticeira. Com 36 anos, nado e criado no meio de tiradores de cortiça e de homens da floresta, Fábio Gabriel é hoje o mais novo serralheiro a levar à forja as reconhecidas machadas montargileiras. Eis o seu testemunho.
“Por agora sou o mais novo a fazer a machada corticeira. Mas em breve devo ser o único”
Chamo-me Fábio Gabriel, tenho 36 anos e não tenho mãos a medir com o trabalho aqui na serralharia. Nasci aqui na Azerveira. O meu pai não era serralheiro nem ferreiro, mas toda a vida trabalhou nas madeiras, com máquinas e coisas assim. Eu andava na escola, mas também não gostei de lá andar. A escola até era fixe, mas não gostava das aulas. Fiz o nono ano em Almeirim, e foi feito à pressa. Foi mesmo só acabar para me vir embora.
Andei na agricultura uns tempos, mas com 15 anos fui trabalhar para uma serralharia de um amigo. Em 2005 estive a fazer uma campanha de cortiça, pela primeira vez, e usei umas machadas velhas que havia em casa. O meu pai sempre tirou cortiça e eu queria começar a tirar também.
Quando acabou essa minha primeira campanha, quis comprar uma machada nova para mim. Era outubro ou novembro. E saí daqui para Montargil, com a minha namorada, à procura da oficina onde se faziam as conhecidas machadas montargileiras. Mas a oficina estava fechada. E há coisas que são mesmo do destino.
Ia um senhor a caminhar pela borda da estrada e perguntei se ele sabia onde era a oficina e expliquei-lhe que queria comprar uma machada. E ele disse que a oficina já estava fechada, que já lá não se fabricava nada.
E, numa brincadeira – é que foi mesmo numa brincadeira! -, eu continuei a conversa, e perguntava porque é que estava fechada. E o senhor disse-me que o dono já estava velho e não havia mais ninguém para as fazer. Eu perguntei se não ensinava ninguém a fazer as machadas. Ele dizia que ninguém queria aprender. E eu disse logo, sem pensar: “Não há ninguém que queira?! Oh, estou já aqui eu!”. E eu estava mesmo na brincadeira e o homem continuava a olhar para mim. Eu perguntei: “mas então onde é que eu posso encontrar o homem?” E ele respondeu: “o homem sou eu”. Pois. O sujeito era mesmo o Sr. Luís, o mestre que fazia as machadas de Montargil.
Continuamos a falar, e o Sr. Luís foi-me mostrar a oficina, mostrar o que fazia e o que não fazia. E eu, sempre na brincadeira, mas sempre a insistir com ele, fui-lhe dizendo que trabalhava numa serralharia e que queria aprender a fazer as machadas. Nesse dia comprei logo uma meia dúzia de máquinas pequenas que ele lá tinha, vim-me embora e deixei-o a pensar.
Eu achava que quando chegasse com o valor do negócio, e ele me pedisse uma exorbitância, eu ia descartar-me. Passado uns dias, o Sr. Luís ligou-me. “Então você sempre está interessado?”. Estou. “Então, se estiver interessado, dê-me X, leva isso tudo e eu vou-lhe ensinar a fazer isso”. E o valor que ele tinha pedido era até um bocado irrisório.
Na altura eu não estava a pensar trabalhar por minha conta, para assumir um negócio como este. Mas lá pensei e comecei a ver as condições. Já tinha um pavilhão mais ou menos montado, tinha-o construído apenas e só para guardar alfaias e tratores. E a serralharia podia ser aqui. Só era preciso fazer uma forja. Pensei, pensei, e lá resolvi: pronto, vamos lá experimentar ver o que isto dá. Construí a forja e fui a Montargil e buscar aquilo tudo. E depois, durante duas semanas tive de caminhar todos os dias daqui para Montargil para ir buscar e levar o Sr. Luís, para ele me ensinar a fazer as machadas…
Na altura, quando estava a aprender com o Sr. Luís ainda desanimei um bocadinho. Porque eu tinha 20 e poucos anos, ele tinha uns 70 anos e nós tínhamos formas de trabalhar e de ver as coisas muito diferentes. Uma coisa que para mim demorava cinco minutos a fazer, para ele demorava cinco horas. Nessas duas semanas ainda fizemos umas três machadinhas. Depois comecei a campanha da cortiça outra vez, ele deixou de vir. Depois dessa campanha, entretive-me eu sozinho a tentar fazer e a experimentar. Umas correram bem, outras menos bem.
Tudo isto tem os seus desafios. É melhor ter patrão do que ser patrão. Sem sombra de dúvida. Há menos chatices. Reclama com o patrão; se trabalha por conta de outrem não está preocupado quando é paga, quando é que não paga, quando é isto ou aquilo, se entrou ao serviço e se corre mal… o problema não é meu, é do patrão. Uma pessoa a trabalhar por contra própria é sempre complicado. É este que não quer pagar, é aquele serviço que correu mal, vai demorar mais tempo…
Mas pronto, aqui estou desde 2006. E entretanto a coisa deu uma reviravolta. Fazer machadas não quer dizer que seja mau, mas não é um serviço que dê para ganhar muito dinheiro. O problema disto é que o ano tem 12 meses, temos despesas todos os dias, e nas machadas só se faz dinheiro na altura de tirar a cortiça. E nós precisamos de viver o resto do ano, temos despesas para pagar.
Comecei a trabalhar noutro tipo de trabalho. E esse trabalho não me larga. No trabalho normal de serralharia, reparações e afins há muita coisa para fazer. Aqui à volta, por ser uma zona de muitos madeireiros, há muita maquinaria industrial e agrícola a funcionar, e muitas reparações que vêm parar aqui.
Não tenho mãos a medir, e depois não se apanha ninguém que queira aprender a profissão, para trabalhar mesmo a sério. Apanha-se um, amanhã apanha-se outro, depois fazem três dias, depois uma semana, depois um mês, depois vão-se embora. Isto acaba por ser um bocado chato, pois o tempo é curto para tanta coisa. Ando sempre um bocado atrapalhado com o serviço.
Ainda vou fazendo algumas machadas, mas quase só por encomenda. Não tenho temos para as fazer e deixar aqui em stock ou levá-las aos revendedores onde sempre as vendi.
A marca que uso nas machadas é a marca que comprei. Quando comprei a forja, o martelo grande, o material todo, trouxe também a marca que se usava. Continuei a trabalhar da mesma forma, tudo igual.
Ainda arranjei uma marca para mim, fiz meia dúzia delas com a marca Montargileira e meia dúzia com outra marca. As que tinham a outra marca estiveram aí muito, muito, muito tempo para sair. E eram iguais. Da mesma fornada, tudo igual. E algumas até mais jeitosasno acabamento, mas não tinham a marca montargileira que toda a gente conhece – todos diziam que eram as melhores. E eu, pronto, continuei com ela. E agora também não tenho tido razão de queixa. Só não tenho feito mais porque o tempo não chega.
Se eu estivesse mais dedicado às machadas teria comércio, à vontade, para umas 50 a 60 por ano. Há sítios onde as podia deixar para venda – em Santana do Mato, em Montemor, nas Vendas Novas… Mas como o tempo não chega para tudo.
Isto para ser bom, e render bem o trabalho, é começar à segunda-feira a trabalhar e quando chegar ao sábado ao almoço estarem seis feitas, acabadas, prontas a vender. E, dessas seis, se as for pesar, não há nenhuma que tenha as mesmas gramas das outras. Não há nenhuma que tenha os mesmos milímetros. Cada uma fica do seu jeito, é uma peça única.
Neste momento, que eu tenha conhecimento, sou o mais novos a fazer a machada corticeira. Aqui na região, havia o Sr. Sampaio que ainda as fazia, mas já tinha uns 70 a 80 anos… Mais longe, em Alcáçovas, também havia um senhor que acho que ainda é vivo, mas estava na casa dos 80 anos e já não deve fazer machadas; e também havia outro senhor a seguir a Vendas Novas que também fazia, mas ia deixar a atividade porque a idade já era muita. Resumindo, daqui a pouco tempo, resto eu. Vou ser o único.
Andam aí umas imaginações de que isto vai deixar de ser necessário. Mas duvido. Eu faço as machadas e faço enxadas também. As enxadas, essas sim, já estão quase em vias de extinção, porque ninguém quer cavar – e porque há outras formas.
Agora, para a cortiça, penso que nem daqui por 100 anos vão arranjar alguma coisa 100% fiável para fazer a retirada da cortiça. Podem inventar muita coisa, mas a cortiça para sair bem tem que lá ir a mão do homem e a machadinha. Por mais engenheiros que venham dizer que podemos passar a tirar só pranchas de pé direito com máquinas à volta do tronco, estraga-se mais do que o que se tira. Por melhor que a gente queira formar, mas nunca se consegue ter uma árvore sempre de pé direito, com a chegada de uma máquina e conseguir fazer.
Eu por cá vou continuar, a tentar dar resposta a tanto trabalho. A sorte é que eu não gosto de estar parado, e até ao sábado, que devia ser dia de descanso, tenho clientes à porta a perguntar pelo serviço.
Já pensei em ir para fora de Coruche, trabalhar para outros sítios, e tive algumas ofertas para sair daqui e ir mesmo para outros países. Não fui noutro tempo, também não será agora. Eu gosto muito de estar aqui na Azerveira, o melhor de tudo é esta paz, o sossego. Todos nos conhecemos uns aos outros, é um sítio pacato, não há stress. Até para as crianças isto é bom. Ar livre, brincar com os cães, os bichos, correr, pular, saltar… é melhor do que estar na cidade.
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