Com 91 anos de idade, desde que enviuvou que Albano Carvalho, o “escultor de Bisalhães” – como todos o conhecem – nunca mais pegou no barro. Ainda tem um balde cheio, preparado pela mulher. Mas a morte da companheira de toda uma vida, há pouco mais de um ano, tirou-lhe a vontade de “continuar a inventar”. “Nunca ninguém me ensinou”, explica. Eis o seu testemunho.
“Não há nada que eu não faça”
Chamo-me Albano, tenho 91 anos e nasci aqui em Bisalhães. A minha mulher, a Natália – que falta ela me faz! -, também nasceu aqui na aldeia, nesta casa mesmo. Depois eu herdei-a e andei a compô-la. Fiz muitas casas. Estive em todas as artes na construção. Mas a minha maior arte era a de pedreiro.
Eu tenho mais irmãos, e quando nós saímos da escola o meu pai mandou-nos logo para o monte, escachar pedra. Íamos os três para lá, nunca tínhamos feito nada daquilo, mas tínhamos força como leões. Mas eu fui sempre desprezado. A minha mãe tinha um filho bonito e uma filha bonita. O desgraçado aqui do Albano é que tinha de ir buscar a lenha para cozer o pão, ir para o monte, fazer essas coisas todas. O filho bonito ia com a mãe para as festas, eu tinha de ficar a cegar pães para o gado.
Quando me juntei com a minha mulher é que mudou tudo. Não trouxe nada de casa dos meus pais. A irmã da minha mulher é que nos deu casa, nos deu tudo, foi sempre muito nossa amiga. Eu nem era muito bonito, mas na altura as mulheres andavam todas atrás de mim. Mas eu virei-me para a minha e disse em voz alta: “escusais de cá vir, que é contigo que eu vou ficar”. E assim foi. Nunca quis mais nenhuma.
Fomos muito felizes, era uma santa mulher, nunca levantamos a voz um para o outro. Comecei a fazer as esculturas depois de deixar a arte de pedreiro. Tinha para aí uns sessenta anos quando comecei a fazer esta merdiola toda. Eu nem sei como é que nasci inteligente. Ninguém me ensinou nada. E na escola precisava de dois anos para passar – aquilo não me interessava nada.
Mas estas coisas, faço tudo o que me vier à cabeça. Faço cabaças, faço jarras, faço passarinhos e Santo Antónios, carros de corrida, a Ceia dos Apóstolos.… não há nada que eu não faça. A Ceia dos Apóstolos até a fiz por três vezes. E olhe que foi difícil conseguir fazer aquilo. Mas eu teimei, teimei e lá consegui.
Eu ia para a Feira de São Pedro vender as minhas esculturas, mas eu nunca fui oleiro. Nunca trabalhei na roda, nem quero. Eu gosto de trabalhar na mão, eu sou um escultor! Chegava a uma casa qualquer e fazia logo um macaco, um boneco, um Santo António na minha hora de descanso. Depois o dono da casa gostava e mandava-me acabar. E eu lá continuava a ganhar o dia e não fazia de pedreiro, mas a fazer as esculturas que eu gosto.
Agora, desde que a minha mulher morreu, não faço mais nada. Para quê? Ainda ali tenho o barro que ela me arranjou, mas agora já não tenho gosto por nada.
Era a minha mulher que me arranjava os papéis, as fotografias, para eu depois tirar ideias e fazer as peças. Eu olhava para o que ela arranjasse. Podia ser um santo ou um macaco qualquer. O que me agradasse mais, eu punha-me a fazer. Graças à minha cabeça, que descobriu como se faz isto tudo. Não sou filho de paneleiros, nunca ninguém me ensinou. Descobri tudo sozinho, mas também nunca ninguém me viu a trabalhar.
Ainda tenho as ferramentas lá em baixo, numa das casas que fiz aqui na aldeia. Nunca mais lá voltei desde que a minha mulher morreu. Agora estou a viver com o meu filho e a minha nora, em Mondrões. Não querem que eu esteja aqui sozinho. Mas eu vou e venho, vou e venho. De Bisalhães para Mondrões, de Mondrões para Bisalhães.
Tenho três filhos, e graças a Deus estão todos muito bem, a viver muito bem. Uma está na Suíça – já lá fui duas vezes. E não tive medo de andar de avião! Eu se morrer também morrem os outros, nem vou pensar nisso. Agora falo com meu neto e com os bisnetos pelo computador. Estamos a jantar e estamos a falar com eles.-
Quando a minha filha vem cá passar férias nunca almoçamos em casa, andamos sempre em pensões e restaurantes. Fartamo-nos de passear. Tomaram-me eles lá com eles. Mas eu não vou, gosto de estar aqui, tenho aqui os outros filhos.
E eu gosto muito da minha aldeia. Toda a gente me conhece, passo por um e ´Ó Albano, isto! Ó Albano aquilo”. Aqui é que eu estou bem. Agora sou um infeliz porque me morreu a minha mulher.
Nem sei se vou algum dia acabar de cozer a macacada toda que para aí tenho. Sei que ainda há por aí muita já cozida e por vender. Mas agora os meus filhos que tratem disso, que eu já não quero saber de mais nada. Já ganhei muito dinheiro, não quero saber mais disso. Morreu a mulher, foi tudo com ela. Faz-me muita falta.
Mais sobre Bisalhães
O barro preto de Bisalhães ainda é o que era
São cada vez mais raros os momentos em que um dos fornos escavados na terra em plena aldeia de Bisalhães, em Vila Real, se enchem de peças de barro, se vestem de fogo e de fumo, e cozem a louça que se tornou um símbolo de concelho e Património da Humanidade. São raros, mas existem e resistem. A tradição do barro preto de Bisalhães ainda é o que era -, e há quem esteja empenhado em que continue a ser.
Leonel Ribeiro, o mais recente oleiro
Tal como muitos da sua geração, quis fugir à miséria que viu aos pais e escolheu outra profissão diferente da dos pais, dos sogros, dos avós. Leonel Ribeiro foi vendedor de uma grande cadeia de distribuição, onde trabalhou 43 anos. Até que depois da reforma resolveu tentar a arte que viu ao pai e aos avós. Agora, até se arrepende de não ter vindo para casa mais cedo.
Querubim Rocha, o oleiro persistente
De manhã à noite, sete dias por semana, não há dia que Querubim Rocha não se vá sentar atrás da sua velha roda e produzir peças de olaria negra de Bisalhães. Tem 82 anos, trabalha desde os nove. Começou a trabalhar para outros, mas soube ser habilidoso e crescer na arte. Agora está quase sempre sozinho na sua oficina, onde há sempre muitas peças para vender. Ultimamente, aos sábados, começou a ter a companhia do filho.
Miguel Fontes, o mais jovem oleiro
Técnico de informática, funcionário público, foi depois da morte dos dois avós, ambos oleiros, que Miguel Fontes pensou no que iria acontecer ao barro que ainda tinham armazenado. Resolveu experimentar a roda do avô e as peças foram saindo, foram ficando cada vez melhores. Foi durante muitos anos o único oleiro a cumprir a velha tradição de ir vender a louça na Feira dos Pucarinhos, que se realiza todos os anos por altura do São Pedro no centro da cidade de Vila Real.
Lídia Pires, a mulher do oleiro
O papel das mulheres na olaria de Bisalhães foi sempre fundamental, mesmo que quase invisível. Afinal, elas é que faziam tudo: preparavam o barro, iam à lenha, decoravam as peças, vendiam-nas. Os homens não saíam de trás da roda, e elas faziam tudo o resto – e ainda tinham energia para dançar. Viúva há mais de 20 anos, Lídia Pires regozija-se com a investida que o genro começou a fazer na olaria.
Cesário Martins, o mais velho na arte
Foi militar da Guarda Nacional Republicana, cargo que desempenhava com empenho e zelo, mas nunca descurou a arte que sempre viu fazer toda a gente da sua aldeia. Com 91 anos, continua a levantar-se todos os dias para se sentar junto à velha roda onde já fez um incontável número de peças. Agora faz peças mais pequenas, e coze louça cada vez menos vezes. Mas não quer parar.