Técnico de informática, funcionário público, foi depois da morte dos dois avós, ambos oleiros, que Miguel Fontes pensou no que iria acontecer ao barro que ainda tinham armazenado. Resolveu experimentar a roda do avô e as peças foram saindo, foram ficando cada vez melhores. Foi durante muitos anos o único oleiro a cumprir a velha tradição de ir vender a louça na Feira dos Pucarinhos, que se realiza todos os anos por altura do São Pedro no centro da cidade de Vila Real. Eis o seu testemunho.
“Manter o legado dos meus avós ainda é aquilo que mais mais cativa”
Chamo-me Miguel Fontes, tenho 44 anos, nasci em Bisalhães e sou neto de dois oleiros. O avô paterno, Joaquim Fontes, e o avô materno, Nascimento Capelas, sempre foram oleiros toda a vida. Não tiveram outra outra atividade, apenas juntavam os trabalhos da agricultura familiar. Por isso desde que me lembro que a atividade da Olaria sempre esteve presente.
O meu pai era filho único, por isso estivemos sempre mais próximos dos meus avós paternos – até vivemos todos juntos até aos meus 11 ou 12 anos. As refeições eram sempre feitas em família com eles. E então eu deixava-os acabar de jantar e ia até à roda do meu avô experimentar fazer umas coisitas. Até nem se devia dizer experimentar, aquilo era um bocadinho mais brincar e tentar perceber o que é que eu conseguia fazer.
Foram saindo algumas coisas. Tenho aí duas ou três peças de recordação. Algumas já o meu tio, que era quem fazia a venda das peças do meu avô paterno – uns cinzeiros que na altura se faziam muito, coisas simples, redondas, baixinhas. Coisas que iam saindo mais ou menos iguais, porque não era muita complexidade. Ele ainda chegou a vender algumas dessas peças que eu fiz. Mas depois a vida continuou, os estudos continuaram. Só mesmo alguns anos depois da partida dos meus avós – que os dois partiram com um ano e meio de diferença – é que me voltou a ideia de voltar a experimentar.
Não é que falássemos muito desse problema nas nossas conversas de família. Mas estávamos a encarar o fim desta arte, desta tradição. Íamos vendo os oleiros a ir embora e ninguém de novo a começar. Parecia uma inevitabilidade. E da parte do meu avô paterno ainda tínhamos armazenada muita matéria-prima. Para além da roda e de todos os utensílios, que se podiam manter como recordações, um memorial, a verdade é que tínhamos ainda muito barro armazenado. E a minha mãe incentivava-me a recomeçar, porque até tinha jeito quando experimentei em miúdo.
E assim foi. Há uns 14 ou 15 anos, num sábado, não estava a trabalhar, experimentei. Voltei a fazer o trabalho da preparação, da moagem, da mistura com a água… E voltei a tentar a roda. A idade já era outra e se calhar o cuidado com que eu também as tentava fazer também era outro. As peças foram saindo, foram ficando cada vez melhores e melhores. E até que se foram juntando algumas que depois também era preciso acabar o procedimento, porque tínhamos poucas para nós fazermos uma cozedura.
Então a minha mãe lembrou-se do senhor Manuel Martins, o nosso oleiro vivo mais antigo. Infelizmente já não consegue trabalhar, mas foi com ele que eu cozi as minhas primeiras peças. Ajudamo-nos um ao outro e foi assim que consegui ter as minhas peças 100% prontas. A partir do momento em que soube que eu já tinha peças feitas, o anonimato foi-se e já foi complicado passar pelos pingos da chuva. A partir daí começou a ser é um passatempo um bocadinho mais sério.
Ainda não estou a trabalhar a tempo inteiro no barro. E só se isto der uma volta muito grande, e muito má, é que lhe pego em exclusividade. Isto porque sou funcionário de Estado e também gosto daquilo que faço – embora seja técnico de informática na Câmara Municipal, que não está nada ligado com o artesanato, o que torna isto um bocadinho ainda mais engraçado. Mas enquanto tiver a minha idade laboral espero manter as duas coisas.
Eu ainda considero muito desafiante fazer peças iguais às que os meus avós faziam, com a elegância com que eles as faziam. A forma está lá, a elegância é que não. Principalmente a caneca de segredo. Uma peça muito, muito vistosa, muito elegante, que eu também a consigo fazer. Mas é das mais complicadas de se fazer. Consigo fazer aproximada, porque a elegância, a elegância ainda não está lá. Esse é o objetivo, mas está um bocadinho difícil.
As outras peças que eles faziam, a passar de meio metro de altura, também ainda não consigo chegar lá. Talvez a qualidade do barro não seja a melhor. Talvez a técnica do oleiro também ainda não esteja lá. Mas peças que eles faziam muito elaboradas, muito bonitas, e também de bom tamanho, ainda estou um bocadinho longe.
Mas a minha motivação, acima de tudo, é continuar aquilo que eles verdadeiramente viviam. Não era só o trabalho deles, onde tiravam a maior parte do rendimento. Eles gostavam verdadeiramente daquilo que faziam. Manter o legado dos meus avós ainda é aquilo que mais mais cativa. A parte financeira também é importante, que também se tira algum rendimento deste trabalho – e ainda podia tirar mais, se me dedicasse a 100%. Mas aquilo que está agora um pouco na moda, amanhã pode não estar. E estar a deixar o certo pelo incerto pode ser complicado. Acima de tudo, e para já, quero manter o legado.
Em relação ao futuro, ele não era risonho. Continuamos a ser poucos a levar para a frente a tradição. Está o senhor Querubim, estou eu, está o meu tio, está a começar o filho do senhor Querubim. Ainda temos o senhor Cesário. E aqui na aldeia, pouco mais. Durante muitos anos, eu era o único a ir para a Feira dos Pucarinhos. E isso dava-me uma tristeza enorme. No ano passado já foi o meu tio. Mas não foi o senhor Albano, porque lhe morreu a esposa.
Esta tradição é muito familiar, tem muito a ver com a dinâmica das famílias. Porque isto é um trabalho de equipa, de família. É preciso dar essa continuidade. E assim, eu também espero deixar sementes nos meus filhos. E estou a fazer diferente dos meus avós, que nunca me ensinaram – nunca me fizeram sentar à roda para explicar como é que se fazia. Mas passei tanto tempo, foram muitas horas a ver, e por imitação as coisas foram saindo. Eu posso explicar aos meus filhos como é que se faz, como é que não… E eles ficarem com a ideia futuramente caso queiram também experimentar. E mesmo que não seja a tempo inteiro, mas que também consigam fazer, continuar e manter a tradição.
Na altura que temos as duas rodas aqui montadas (quando estamos perto da Feira de São Pedro, em junho), eu estou numa roda e o meu pai também vai fazendo algumas coisas na outra. Nessa altura a minha filha Maria, que só tem oito anos mas já tem muita curiosidade e motivação, senta-se numa roda ao lado da minha. Lá está, meio a brincar, mas vai experimentando. E é daí que depois as coisas continuam.
Para além da Maria, tenho um filho com 16 anos. Agora estamos a viver na casa dos meus pais enquanto não compomos a casa que era do meu avô – e que era onde eu morava até a Maria nascer. Eles andam os dois na escola em Vila Real. É uma das vantagens de viver nesta aldeia – estamos muito perto da cidade. Não são precisos dez minutos para estarmos na cidade. Queremos estar na paz, estamos em casa. Porque está tudo muito calmo, tudo muito pacífico.
Aqui na aldeia já só funciona a pré-primária, os miúdos foram todos concentrados no Centro Escolar de Lordelo. Estar na cidade tem vantagens e desvantagens. A desvantagem é que se vão esvaziando as aldeias. A principal vantagem, por exemplo, a minha filha já viajou e fez mais visitas de estudo lá no Centro Escolar das Árvores, em Vila Real, do que o meu filho que andou aqui os quatro anos na escola.
Mais sobre Bisalhães
O barro preto de Bisalhães ainda é o que era
São cada vez mais raros os momentos em que um dos fornos escavados na terra em plena aldeia de Bisalhães, em Vila Real, se enchem de peças de barro, se vestem de fogo e de fumo, e cozem a louça que se tornou um símbolo de concelho e Património da Humanidade. São raros, mas existem e resistem. A tradição do barro preto de Bisalhães ainda é o que era -, e há quem esteja empenhado em que continue a ser.
Leonel Ribeiro, o mais recente oleiro
Tal como muitos da sua geração, quis fugir à miséria que viu aos pais e escolheu outra profissão diferente da dos pais, dos sogros, dos avós. Leonel Ribeiro foi vendedor de uma grande cadeia de distribuição, onde trabalhou 43 anos. Até que depois da reforma resolveu tentar a arte que viu ao pai e aos avós. Agora, até se arrepende de não ter vindo para casa mais cedo.
Querubim Rocha, o oleiro persistente
De manhã à noite, sete dias por semana, não há dia que Querubim Rocha não se vá sentar atrás da sua velha roda e produzir peças de olaria negra de Bisalhães. Tem 82 anos, trabalha desde os nove. Começou a trabalhar para outros, mas soube ser habilidoso e crescer na arte. Agora está quase sempre sozinho na sua oficina, onde há sempre muitas peças para vender. Ultimamente, aos sábados, começou a ter a companhia do filho.
Lídia Pires, a mulher do oleiro
O papel das mulheres na olaria de Bisalhães foi sempre fundamental, mesmo que quase invisível. Afinal, elas é que faziam tudo: preparavam o barro, iam à lenha, decoravam as peças, vendiam-nas. Os homens não saíam de trás da roda, e elas faziam tudo o resto – e ainda tinham energia para dançar. Viúva há mais de 20 anos, Lídia Pires regozija-se com a investida que o genro começou a fazer na olaria.
Cesário Martins, o mais velho na arte
Foi militar da Guarda Nacional Republicana, cargo que desempenhava com empenho e zelo, mas nunca descurou a arte que sempre viu fazer toda a gente da sua aldeia. Com 91 anos, continua a levantar-se todos os dias para se sentar junto à velha roda onde já fez um incontável número de peças. Agora faz peças mais pequenas, e coze louça cada vez menos vezes. Mas não quer parar.
Albano Carvalho, o escultor
Com 91 anos de idade, desde que enviuvou, há pouco mais de um ano, que Albano carvalho, o escultor de Bisalhães como todos o conhecem, nunca mais pegou no barro. Ainda tem um balde cheio, preparado pela mulher. Mas a morte da companheira de toda uma vida tirou-lhe a vontade de “continuar a inventar”. “Nunca ninguém me ensinou”, explica.