Foi militar da Guarda Nacional Republicana, cargo que desempenhava com empenho e zelo, mas nunca descurou a arte que sempre viu fazer toda a gente da sua aldeia. Com 88 anos, continua a levantar-se todos os dias para se sentar junto à velha roda onde já fez um incontável número de peças. Agora faz peças mais pequenas, e coze louça cada vez menos vezes. Mas não quer parar. Eis o seu testemunho.
“Tenho uma grande paixão por isto!”
Chamo-me Cesário Martins e nasci aqui em Bisalhães em 1935. Já tenho uns aninhos. Mas o meu irmão Manuel ainda é mais velho do que eu, já fez 92 anos. Ele também é oleiro como eu, mas agora está muito doente, não consegue fazer peça nenhuma. Eu às vezes também adoeço. Ainda há 15 dias apanhei uma grande gripalhada. Mas ainda por aqui vou andando, sempre de cara bem lavada, que é para parecer mais novo. Gosto muito de fazer isto. O barro para mim é uma paixão.
Eu sempre gostei disto, mas também tive outra profissão. Em 1956 fui para a Guarda Nacional Republicana. Comecei em Lisboa, estive na Ajuda e no Cais do Sodré. Como já tinha a carta e era motorista, não me deixaram ir para fora.
Apanhei dois louvores na GNR – o homem mais aprumado e mais limpo! Depois de Lisboa vim para o Porto, e foi a mesma coisa. Não fui concorrer para lado nenhum, porque ainda me podiam mandar para longe. Não me atrevi, a minha casinha chega-me. E eu gosto muito de cá estar.
A minha mulher também era daqui de Bisalhães. Foi aqui que nos conhecemos. E eu aos 18 anos já tinha a minha filha. Nasceu em 1953, estava eu na tropa. Tive mais dois filhos, mas já morreram. Só fiquei com esta, que vive agora comigo. Ou eu vivo com ela.
Também tenho netos e bisnetos, mas não tenho mais ninguém que queira seguir esta arte. Ainda tentei com dois netos, mas não querem saber. Tenho uma sobrinha, a Lina, que é quem me ajuda quando preciso, e que até leva muito jeito para o barro. Tem jeito para a roda e tudo! Mas também não pegou nisto.
Sinceramente, não sei como é que vão continuar a tradição. Se levaram isto à UNESCO, agora devia criar condições para isto continuar.
Eu já nem sei quantas peças de barro fiz na minha vida. E eu gosto de fazer de tudo. Agora já faço menos, até é mais para me entreter. Mas quero cozê-las todas, vender tudo! Tenho feito peças mais pequeninas. Chego aqui de manhã, preparo um bocadinho de barro e pronto.
Preparar o barro é muito difícil. Eu e o meu pai éramos dos poucos homens que sabíamos preparar o barro, que aqui em Bisalhães esse trabalho era sempre das mulheres. E é bem duro e difícil. Também era a minha mulher que me ajudava muito. Preparava o barro, amassava, fazia os desenhos. Deixava tudo preparado, para que quando eu chegasse do trabalho, na GNR, pudesse continuar sempre o serviço, aqui na roda.
Uma altura consegui inventar uma nova forma de picar o barro. Estar ali no pio a picar é muito difícil. Lembrei-me que podia amassá-lo se conseguisse passar com as rodas da camioneta por cima. Pensei nisso, e assim fui. Experimentei e funcionou!
Os meus vizinhos ficaram impressionados. Agora é assim que eu tenho feito. Há um senhor, aqui vizinho, que me ajuda. Pego na carrinha, ponho o barro aqui por trás e esmigalho-o com a roda da carrinha. Agora o senhor até está no hospital espero que melhore rápido. E eu ainda ali tenho algum barro moído para peneirar e amassar. Esta manhã já preparei uma boleirazita, já posso fazer alguma coisa com ela.
Continuo a fazer peças, à espera que venha a oportunidade de fazer uma fornada. Eu agora cozo com um colega meu, o Miguel, e o tio dele, o Leonel. Andamos todos a juntar peças à espera que o bom tempo nos deixe cozer. Quando está muito calor não podemos, por causa dos incêndios. Com chuva e com humidade também não podemos fazer. Vamos estando sempre atentos. Já não é como antes. Eu conseguia fazer uma ou duas fornadas por mês. Agora, faço quando calhar.
Muitos aqui na aldeia fizeram os seus próprios fornos. O meu irmão fez um em casa dele. O Querubim – não somos amigos, mas eu falo com ele e ele fala comigo… sabe o que se costuma dizer… a inveja matou Caim…. Eu continuo a usar o forno comunitário. Já que os outros oleiros fizeram nas casas deles, eu continuo a usar o comunitário e assim não tenho de estragar as minhas videiras para fazer mais um.
O dia de forno é um dia difícil, de muito trabalho. Tem de se começar muito cedo, de madrugada, para meter a louça ao forno. Quando forem para aí umas oito horas no máximo, já a louça tem de estar tupida – isto é, tapada com rama e terra preta por cima, abafada, para o barro cozer e apanhar cor. Depois tem de se deixar estar algum tempo, aí umas três ou quatro ou cinco horas. Depende da quantidade da louça e do tamanho da fornada. Ela tem toda de ficar preta.
Fiquei viúvo há uns quatro ou cinco anos. Mas já há mais tempo ainda que tinha de ser eu a fazer tudo, a gogar e a fazer os desenhos, porque a minha mulher já não podia. Mas tenho mesmo pena de estar sozinho e de não deixar a minha boa reforma para ninguém.
De resto, já não posso dizer que tenho saudades de nada, porque as coisas mudaram muito. Só quero que tudo me corra bem, como tem corrido até agora. E que aos outros também corra. Mas primeiro a mim, depois aos outros (sorriso). Ainda tenho muitos alguidares para fazer.
Mais sobre Bisalhães
O barro preto de Bisalhães ainda é o que era
São cada vez mais raros os momentos em que um dos fornos escavados na terra em plena aldeia de Bisalhães, em Vila Real, se enchem de peças de barro, se vestem de fogo e de fumo, e cozem a louça que se tornou um símbolo de concelho e Património da Humanidade. São raros, mas existem e resistem. A tradição do barro preto de Bisalhães ainda é o que era -, e há quem esteja empenhado em que continue a ser.
Leonel Ribeiro, o mais recente oleiro
Tal como muitos da sua geração, quis fugir à miséria que viu aos pais e escolheu outra profissão diferente da dos pais, dos sogros, dos avós. Leonel Ribeiro foi vendedor de uma grande cadeia de distribuição, onde trabalhou 43 anos. Até que depois da reforma resolveu tentar a arte que viu ao pai e aos avós. Agora, até se arrepende de não ter vindo para casa mais cedo.
Querubim Rocha, o oleiro persistente
De manhã à noite, sete dias por semana, não há dia que Querubim Rocha não se vá sentar atrás da sua velha roda e produzir peças de olaria negra de Bisalhães. Tem 82 anos, trabalha desde os nove. Começou a trabalhar para outros, mas soube ser habilidoso e crescer na arte. Agora está quase sempre sozinho na sua oficina, onde há sempre muitas peças para vender. Ultimamente, aos sábados, começou a ter a companhia do filho.
Miguel Fontes, o mais jovem oleiro
Técnico de informática, funcionário público, foi depois da morte dos dois avós, ambos oleiros, que Miguel Fontes pensou no que iria acontecer ao barro que ainda tinham armazenado. Resolveu experimentar a roda do avô e as peças foram saindo, foram ficando cada vez melhores. Foi durante muitos anos o único oleiro a cumprir a velha tradição de ir vender a louça na Feira dos Pucarinhos, que se realiza todos os anos por altura do São Pedro no centro da cidade de Vila Real.
Lídia Pires, a mulher do oleiro
O papel das mulheres na olaria de Bisalhães foi sempre fundamental, mesmo que quase invisível. Afinal, elas é que faziam tudo: preparavam o barro, iam à lenha, decoravam as peças, vendiam-nas. Os homens não saíam de trás da roda, e elas faziam tudo o resto – e ainda tinham energia para dançar. Viúva há mais de 20 anos, Lídia Pires regozija-se com a investida que o genro começou a fazer na olaria.
Albano Carvalho, o escultor
Com 91 anos de idade, desde que enviuvou, há pouco mais de um ano, que Albano carvalho, o escultor de Bisalhães como todos o conhecem, nunca mais pegou no barro. Ainda tem um balde cheio, preparado pela mulher. Mas a morte da companheira de toda uma vida tirou-lhe a vontade de “continuar a inventar”. “Nunca ninguém me ensinou”, explica.