O papel das mulheres na olaria de Bisalhães foi sempre fundamental, mesmo que quase invisível. Afinal, elas é que faziam tudo: preparavam o barro, iam à lenha, decoravam as peças, vendiam-nas. Os homens não saíam de trás da roda, e elas faziam tudo o resto – e ainda tinham energia para dançar. Viúva há mais de 20 anos, Lídia Pires regozija-se com a investida que o genro começou a fazer na olaria. Eis o seu testemunho.
“Já não pensava que ia voltar a amassar barro e a gogar as peças”
Chamo-me Lídia da Anunciação Pires e nasci aqui em Bisalhães há 88 anos. Aqui na aldeia passava-se muita fome, vivia-se na miséria, mas toda a gente se dedicava ao barro. Eu nasci e cresci no meio disto. O meu pai era oleiro, o meu avô era oleiro. O meu marido foi oleiro. Aqui na aldeia era assim, os homens iam para a roda, as mulheres faziam tudo o resto. Ai, e que vida difícil a gente levava!
O meu marido chamava-se Lucílio Fernandes e morreu há uns 20 anos, com cancro na garganta. Eu já não pensava que ia voltar a amassar barro e a gogar as peças, mas olhe que é uma coisa que gosto muito de fazer. Fiquei muito contente ao ver o meu genro a sentar-se na roda outra vez.
Os meus braços já não podem tanto, mas agora também não é tão difícil como antigamente. Não é preciso ir pelo monte fora apanhar lenha, nem é preciso andar com a lenha à cabeça para a ir vender. Nós passávamos a vida com grandes carregos à cabeça!
Dizíamos que íamos ganhar o carrego – que era o que chamávamos, quando se tirava a louça e íamos levá-la para Vila Real a pé. Às vezes íamos lá duas vezes no mesmo dia. Íamos carregadas, vínhamos carregadas com batatas e o que houvesse, e tornávamos carregadas. E quando íamos à lenha saímos aqui de noite. Que também não era como agora, que há lenha em todo o lado. Nós tínhamos de andar muito, atravessar muitos montes para encontrar a lenha que precisávamos. Mas também era uma festa. Íamos sempre muitas mulheres, que aqui, como digo, toda a gente vivia disto.
Eu não sei ler nem escrever, mas gosto muito de fazer desenhos no barro. Tenho aqui uma cesta com muitos gogos, as pedrinhas que apanhávamos no fundo do rio Douro, ali antes de fazerem a barragem na Régua. Quando íamos ao outro lado, à festa da Santa Eufémia, parávamos sempre no rio para apanhar umas pedrinhas. E é com elas que fazemos os desenhos no barro.
Quando o meu marido fazia louça churra, a louça de servir, como o alguidar, as cafeteiras, as panelas, não era preciso nada disto. Mas depois ele começou a fazer louça fina e eu tive de começar a tirar da minha cabeça os desenhos que ia fazer.
Neste trabalho as mulheres ajudavam muito os homens. Aliás, a mulher trabalhava muito mais, eles unicamente faziam a louça. A mulher é que picava o barro, é que ia ao monte, é que desenhava, é que carregava a louça, a vendia, fazia tudo! Só não fazia louça, nunca nenhuma mulher aprendeu.
Naquele tempo, as mulheres não usavam calças, era só saias. Para estar na roda tinham de estar assim escanchadas, vinham as saias cá para cima, como é que era? Não podia ser. Se fosse agora, as mulheres já usam calças, já aprendiam como eles.
Às vezes ficávamos cansadinhas de vir do monte com os molhos à cabeça, era chegar a casa e comer alguma coisa – se houvesse alguma coisa para comer! – e depois ir para o pio picar o barro. Ai, Jesus! Mas olhe, ainda aqui estamos. E parece que duramos mais que os mais novos. O problema é que são como os pitos do aviário… não podem nada, logo vão embora.
Às vezes a minha gente aqui berra comigo, que não quero comer como eles. Mas eu como como me apetece. Sopa faço como fazia antigamente, porque gosto de comer assim. Gosto de comer o caldo com feijão e batata e um bocadinho de pevide, ou arroz. Eu faço para mim, e o Leonel come como eu. Mas não como iogurtes e essas coisas. Comi uma vez. Aliás, provei mas nem cheguei a comer… Andar aqui com geringonças, não!
Tive uma vida muito cheia. Gostava muito de dançar! Quando eram os bailes da vareira, ai meu Deus o que eu dançava. Felizmente o meu homem também gostava. Se eu tivesse daqueles que não nos deixa bailar ia ser muito infeliz. Mas ele também gostava, e ele também dançava. Era um para um lado e dois para o outro.
Eu andei por muitos lados a vender a nossa louça, conheci muita gente. Lembro-me que quando foi o 25 de Abril eu estava no Estoril, íamos sempre fazer o que chamávamos Mercado da Primavera. Estava ao lado da Rosa Ramalho, de Barcelos, quando soubemos da revolução. Tenho para aí um livro com muitas, muitas, muitas fotografias.
Mais sobre Bisalhães
O barro preto de Bisalhães ainda é o que era
São cada vez mais raros os momentos em que um dos fornos escavados na terra em plena aldeia de Bisalhães, em Vila Real, se enchem de peças de barro, se vestem de fogo e de fumo, e cozem a louça que se tornou um símbolo de concelho e Património da Humanidade. São raros, mas existem e resistem. A tradição do barro preto de Bisalhães ainda é o que era -, e há quem esteja empenhado em que continue a ser.
Leonel Ribeiro, o mais recente oleiro
Tal como muitos da sua geração, quis fugir à miséria que viu aos pais e escolheu outra profissão diferente da dos pais, dos sogros, dos avós. Leonel Ribeiro foi vendedor de uma grande cadeia de distribuição, onde trabalhou 43 anos. Até que depois da reforma resolveu tentar a arte que viu ao pai e aos avós. Agora, até se arrepende de não ter vindo para casa mais cedo.
Querubim Rocha, o oleiro persistente
De manhã à noite, sete dias por semana, não há dia que Querubim Rocha não se vá sentar atrás da sua velha roda e produzir peças de olaria negra de Bisalhães. Tem 82 anos, trabalha desde os nove. Começou a trabalhar para outros, mas soube ser habilidoso e crescer na arte. Agora está quase sempre sozinho na sua oficina, onde há sempre muitas peças para vender. Ultimamente, aos sábados, começou a ter a companhia do filho.
Miguel Fontes, o mais jovem oleiro
Técnico de informática, funcionário público, foi depois da morte dos dois avós, ambos oleiros, que Miguel Fontes pensou no que iria acontecer ao barro que ainda tinham armazenado. Resolveu experimentar a roda do avô e as peças foram saindo, foram ficando cada vez melhores. Foi durante muitos anos o único oleiro a cumprir a velha tradição de ir vender a louça na Feira dos Pucarinhos, que se realiza todos os anos por altura do São Pedro no centro da cidade de Vila Real.
Cesário Martins, o mais velho na arte
Foi militar da Guarda Nacional Republicana, cargo que desempenhava com empenho e zelo, mas nunca descurou a arte que sempre viu fazer toda a gente da sua aldeia. Com 91 anos, continua a levantar-se todos os dias para se sentar junto à velha roda onde já fez um incontável número de peças. Agora faz peças mais pequenas, e coze louça cada vez menos vezes. Mas não quer parar.
Albano Carvalho, o escultor
Com 91 anos de idade, desde que enviuvou, há pouco mais de um ano, que Albano carvalho, o escultor de Bisalhães como todos o conhecem, nunca mais pegou no barro. Ainda tem um balde cheio, preparado pela mulher. Mas a morte da companheira de toda uma vida tirou-lhe a vontade de “continuar a inventar”. “Nunca ninguém me ensinou”, explica.