De manhã à noite, sete dias por semana, não há dia que Querubim Rocha não se vá sentar atrás da sua velha roda e produzir peças de olaria negra de Bisalhães. Tem 82 anos, trabalha desde os nove. Começou a trabalhar para outros, mas soube ser habilidoso e crescer na arte. Agora está quase sempre sozinho na sua oficina, onde há sempre muitas peças para vender. Ultimamente, aos sábados, começou a ter a companhia do filho. Eis o seu testemunho.
“Já vi o futuro da olaria de Bisalhães mais negro do que vejo hoje”
Chamo-me Querubim, nasci aqui em Bisalhães numa família com mais irmãos. Éramos quatro e já só estamos dois. O meu irmão tem 92 ou 94 anos. Os outros dois já faleceram. E eu gostava de ser como os burros, com licença, e nem saber a minha idade. Mas sei. Tenho 82 anos desde o dia 15 de novembro.
Já tenho alguma idade, mas esta arte é bem mais antiga. Deve ter uns 400 anos ou mais. Quem me ensinou? Aprendi! O meu pai era oleiro e morreu tinha eu seis anos. Os meus irmãos faziam isto. Eu, no meio deles, também lá andava. Fui arranjar uma roda a um vizinho meu. Era uma roda pequenina, arranjei-a como pude, sei que a consegui pôr a andar.
Querubim Rocha
Ninguém queria morar no largo principal por causa do barulho da canalha. Agora está quase tudo deserto, é um sossego do raio.
Quando a minha mãe, Deus lhe perdoe, começou a por-me o barro, eu sozinho não via assim muito, não conseguia fazer nada. Lembro-me que fiz um carro de tábua, com um caixote muito comprido que se usava das sardinhas, e eu levava-o lá para o fundo da aldeia, para ir ter com os outros oleiros. Levava roda, levava tudo. Então pus-me ao pé dos outros, e lá fui andando, andando, que até aprendi. Sentava-me sempre perto de um oleiro chamado Sizenando. Infelizmente já morreu. Quando já sabia alguma coisa comecei a trabalhar para ele. E depois, quando eu precisava de gente para fazer uma fornada, ele também trabalhava para mim. E assim fazíamos as coisas. Fomos como irmãos, sempre nos demos bem. Mas ele teve um filho que estragou tudo. Também estragou a nossa relação.
Sabe que no tempo em que eu era criança havia uns sessenta e tal oleiros. Agora não há quase ninguém. Uns morreram, outros foram para cantoneiros, outros foram para a guarda (GNR) e outros…. Ficou nisto, ninguém quer esta arte.
Mas digo-lhe uma coisa: eu no início também não gostava. Eu comecei a andar aos dias, a trabalhar para eles. Mas depois vi que um senhor começou a ir vender para a estrada – a estrada que ia para o Porto, ainda não havia IP4 nem coisa nenhuma. Começou por lá vender aos turistas e a quem passava. Começou a dar nas vistas, a estoirar o dinheiro, a dar merendas uns e outros. E eu pensava, ah… se ele era um miserável como nós e está assim a estoirar dinheiro… é porque vende!
Então eu comecei também a tentar fazer qualquer coisa. O dono de uma quinta daqui, um homem muito forte que quase me criou e para quem eu trabalhava, dizia-me assim: “faz loiça fina… não vês aqueles basófias que já mostram as notas…”
Antigamente havia aquelas de 500 escudos, aquelas de chapéu, e quando os oleiros as punham no bolso da camisa, branquinha, as notas até reluziam! Andavam aí todos vaidosos.
E eu comecei a querer fazer loiça fina. Mas eu não supria, não sabia. Nem fazia nada que tivesse jeito. Ficavam mal feitas, esborrachava-as. Mas lá comecei a encarrilar até que levei as minhas primeiras peças para essa estrada. No primeiro dia ganhei logo o dia da semana. Ah, lembro-me bem…
Vim de calça preta e camisa branca, por aí abaixo, já parecia um padre (risos). Ui, que inveja que foi. Já não sei há quanto tempo foi isso. Sei que as peças eram a 25 tostões. E que eu já levei de tudo. Bilhas de rosca, canecas de segredo, alguidares e assadeiras. Já tinha louça fina, umas rodilhas, que nem eram assim lá muito bem feitas, mas olhe, bem que me compravam aquilo. Depois comecei a melhorar, a melhorar e a melhorar.
A primeira vez que pus a minha louça na nossa Feira do São Pedro tirei logo o primeiro prémio. Um vizinho meu foi lá com uma bilha muito grande. E eu fui lá com uma pequenina mas muito bem boladinha, toda certinha e com picado certinho nas cintas, e tirei lá o prémio.
Depois, durante uns anos a eito, havia aí um presidente do Turismo que era de Amarante, me comprava tudo o que tinha de novidade. Dizia “este, este e este é para mim, vou levar para o Turismo”. Eu dizia “ó senhor engenheiro deixe-me estar esse material na feira”. E ele respondia, “não senhor!, vai-mo lá levar”.
E foi assim. Agarrei uma rivalidade com os meus parceiros que Deus me livre. Enchi-me de passar um sacrifício com os meus vizinhos. Depois inventaram que a minha louça era de fora. Porque eu tinha sempre peças diferentes e eles atacavam-me com isso. Mas pronto, assim fui andando.
Mas no início foi difícil. Lembro-me da primeira peça que fiz. O meu irmão teve uma encomenda para a Régua e pôs-me a mim a fazer assadeiras. E isto ainda leva um bocadinho de tempo, e a gente desanima.
E o pior ainda era um outro problema. Quem trabalhasse nesta arte, as moças não olhavam para a gente. Começavam a dizer, ‘olha, lá vêm os paneleiros…’
Não nos chamavam oleiros, chamavam-nos paneleiros. E onde a gente chegasse, ia a um baile ou assim, punham-nos sempre de parte. Se uma pessoa tivesse um lameiro era importante. Quem trabalhasse nesta arte, nada. Não tinha hipótese nenhuma com as raparigas.
A minha mulher também era daqui de Bisalhães. E o meu sogro também era oleiro. Era o dono desta roda em que eu estou agora a trabalhar.
Eu não comecei logo a trabalhar por conta própria, andei muitos anos a ganhar os dias, para pessoas que iam para a estrada vender. E eu tinha um patrão que era um ougado como tudo. Se chegássemos mais tarde uns dois minutos, bla, bla, bla, nunca mais se calava! A mulher, não. A mulher dele era de categoria. E sabe onde me metiam a trabalhar? Ao pé dos porcos.
Eu ali todo o dia, um rapaz novo, com 16, 17 anos, a pensar “isto não é vida”. Quando chegava a segunda-feira, nem dormia nada, com a cisma de ir para lá. Um dia chateei-me e vim-me embora. Ia lá a minha mulher levar-me o almoço, e eu só lhe disse, “anda-te embora”. E fui trabalhar para outro, nesse dia. Arranjava sempre quem desse trabalho. Havia muito trabalho. Morava cá em Bisalhães muita gente. Ninguém queria morar no largo principal por causa do barulho da canalha. Agora está quase tudo deserto, é um sossego do raio.
A minha casa é lá em baixo, no fundo da aldeia. Mas tenho o meu atelier aqui no centro há uns 25 ou 26 anos. Foi o melhor que fiz. Lá em baixo eu não vendia grande coisa, porque tinha uns certos inimigos que não deixavam ir ninguém até lá a casa.
Eu gostava de fazer diferente dos outros. Foi sempre o meu lema. Inventava peças novas, nunca gostava de fazer peças iguais. Mas agora sou obrigado a fazê-las. Porque antes eu tinha artistas que me faziam a louça, e eu podia fazer o que me apetecia. Agora tudo isso findou, tenho de fazer de tudo. Mais ainda desde que a minha mulher morreu.
Porque eu agora é que faço tudo. Componho o barro, faço os desenhos… tudo. Como sou viúvo, estou sozinho a fazer isto. Quando a minha mulher era viva, uma santa mulher, que dava despacho a tudo, ela é que tratava das peças, tratava das lenhas, punha a secar, ia vender… tudo! Ela dava despacho a tudo, ao que eu fazia, e o que faziam os artistas que trazia a trabalhar por minha conta. Agora estou cá eu sozinho, a fazer tudo, por isso é que demoro mais a fazer uma fornada para cozer.
Eu já não uso os fornos comunitários há muito. Tenho o meu, cozo quando quiser. Deixo lá a louça de um dia para o outro e tudo. Mas agora tenho sempre de arranjar quem me ajude, que aquilo não é trabalho para se fazer sozinho. Há aí na aldeia uma senhora que é muito minha amiga e que me ajuda sempre que eu preciso. Essa mulher, a dona Lina, também é uma mulher que se ajeita com tudo!
Eu gosto de fazer as peças todas, mas há algumas que às vezes até tenho repeso de as vender, custa-me. Os meus filhos dizem-me “ó pai, não venda estas peças”, porque querem ficar com elas, para recordação. Há muitas peças que eu invento. Tenho para aí, por exemplo, muitos monstros para o dias das bruxas. Vi aquelas abóboras na televisão e eu também inventei umas carantonhas. Há sempre quem compre.
O que vendo mais é o alguidar, a assadeira e o tacho. Há aí uns tachinhos pequenos que os estrangeiros levam muito. Mas a gente nunca sabe o que vai e o que não vai vender. Às vezes tenho aí louça muito tempo. Depois vem uma rebanhada e levam tudo.
Um destes dias veio aí uma estrangeira que andou a ver, a ver, a ver…levou uma porrada de coisas pequenas, que até nem tinham graça nenhuma. Só malgas levaram umas nove ou dez. Até foram às do meu rapaz e levaram seis ou sete. O meu filho até fica mais animado. Ele agora tem vindo para cá ao sábado, fazer umas peças e já se tem desenrascado bem. E eu fico contente, para ver se isto não acaba.
Sabe, eu já vi o futuro do barro de Bisalhães pior. Agora vejo o meu filho, que já anda com um vício do raio aqui com o barro. Há o Miguel lá em cima, o Leonel, vizinho aqui do lado… eles vão fazendo peças. O que isto era e o que isto está…
Eu também já não tenho pernas que me ajudem. Parti a anca, tive de subir um bocado a roda cá para cima, que não posso estar tão curvado. Mas quando é para fazer peças grandes não dá jeito ter a roda tão levantada. Enfim, eu não sinto o peso da idade mas as pernas, de facto, não me ajudam. Mas eu venho para cá todos os dias, não há sábados, nem domingos, nem feriados. A minha vida é isto.
Agora nem à missa vou. Eu também fazia parte da tuna, a que vai lá tocar à missa, mas agora nem tuna, nem missa nem nada. Fizemos tantas borgas naquela tuna! Eu tocava violino, e fazíamos muitas borgas mesmo. Mas isso era quando havia festas por todo o lado. Agora não há nada.
Eu gosto de estar aqui sozinho, a pensar na vida. Um gajo também tem que refletir. Também gosto de ter companhia, mas não me importo de estar aqui no meu canto, a trabalhar. Venho para aqui todos os dias. Vou a casa almoçar – a minha filha, que vive comigo, faz-me o almoço. E depois venho para o atelier outra vez. Às vezes estou aqui até às 20h00.
Um dia bom, para mim, é quando posso dizer que o negócio me correu bem, que me entrou gente bem disposta pela porta, e que nos dá palavras de incentivo. “O senhor não deixe morrer isto, porque assim, porque assado”. Isso dá um certo conforto à gente.
Mais sobre Bisalhães
O barro preto de Bisalhães ainda é o que era
São cada vez mais raros os momentos em que um dos fornos escavados na terra em plena aldeia de Bisalhães, em Vila Real, se enchem de peças de barro, se vestem de fogo e de fumo, e cozem a louça que se tornou um símbolo de concelho e Património da Humanidade. São raros, mas existem e resistem. A tradição do barro preto de Bisalhães ainda é o que era -, e há quem esteja empenhado em que continue a ser.
Leonel Ribeiro, o mais recente oleiro
Tal como muitos da sua geração, quis fugir à miséria que viu aos pais e escolheu outra profissão diferente da dos pais, dos sogros, dos avós. Leonel Ribeiro foi vendedor de uma grande cadeia de distribuição, onde trabalhou 43 anos. Até que depois da reforma resolveu tentar a arte que viu ao pai e aos avós. Agora, até se arrepende de não ter vindo para casa mais cedo.
Miguel Fontes, o mais jovem oleiro
Técnico de informática, funcionário público, foi depois da morte dos dois avós, ambos oleiros, que Miguel Fontes pensou no que iria acontecer ao barro que ainda tinham armazenado. Resolveu experimentar a roda do avô e as peças foram saindo, foram ficando cada vez melhores. Foi durante muitos anos o único oleiro a cumprir a velha tradição de ir vender a louça na Feira dos Pucarinhos, que se realiza todos os anos por altura do São Pedro no centro da cidade de Vila Real.
Lídia Pires, a mulher do oleiro
O papel das mulheres na olaria de Bisalhães foi sempre fundamental, mesmo que quase invisível. Afinal, elas é que faziam tudo: preparavam o barro, iam à lenha, decoravam as peças, vendiam-nas. Os homens não saíam de trás da roda, e elas faziam tudo o resto – e ainda tinham energia para dançar. Viúva há mais de 20 anos, Lídia Pires regozija-se com a investida que o genro começou a fazer na olaria.
Cesário Martins, o mais velho na arte
Foi militar da Guarda Nacional Republicana, cargo que desempenhava com empenho e zelo, mas nunca descurou a arte que sempre viu fazer toda a gente da sua aldeia. Com 91 anos, continua a levantar-se todos os dias para se sentar junto à velha roda onde já fez um incontável número de peças. Agora faz peças mais pequenas, e coze louça cada vez menos vezes. Mas não quer parar.
Albano Carvalho, o escultor
Com 91 anos de idade, desde que enviuvou, há pouco mais de um ano, que Albano carvalho, o escultor de Bisalhães como todos o conhecem, nunca mais pegou no barro. Ainda tem um balde cheio, preparado pela mulher. Mas a morte da companheira de toda uma vida tirou-lhe a vontade de “continuar a inventar”. “Nunca ninguém me ensinou”, explica.