Tal como muitos da sua geração, quis fugir à miséria que via à sua volta e escolheu uma profissão diferente da dos pais, dos sogros, dos avós. Leonel Ribeiro foi vendedor de uma grande cadeia de distribuição, onde trabalhou 43 anos. Até que depois da reforma resolveu tentar a arte da olaria. Agora, até se arrepende de não ter vindo para casa mais cedo. Eis o seu testemunho.
“É bom saber que a arte vai continuando”
Chamo-me Leonel Ribeiro, tenho 62 anos, e posso dizer que comecei a ser oleiro há pouco mais de um. Eu nasci aqui em Bisalhães, no meio dos oleiros, mas nunca me dediquei muito a esta arte. Só desde que vim para casa, depois de me reformar, e por saber que a arte estava a desaparecer, é que resolvi tentar. Comecei a trabalhar com a roda do meu sogro, a ver o que é que conseguia. E acabei por me surpreender.
A primeira vez que eu fiz uma peça em barro teria uns 14 ou 15 anos. O meu pai e a minha mãe todos os anos iam às Caldas de Chaves, tinham problemas de reumático. E nesse ano, o meu pai desafiou-me a aprender a fazer. Isto porque não queria que eu andasse ai à solta na aldeia, com os meus primos, às bulhas.
Então mandou-me fazer umas peças que ele quando chegasse as terminava. Isto foi para aí em 1972 ou 73 – eu lá fiz as peças, mas depois nunca mais peguei nisto. Claro que na aldeia todos trabalhavam nisto, e eu ajudava em tudo. Ia com a minha mãe ao monte buscar a lenha, ajudava a preparar o barro. Sabe como é na aldeia, fazemos um pouco de tudo. Temos animais, temos porcos, ovelhas, e eu é que era o pastor. Eu é que era o rapaz da casa, era o mais novo dos cinco, mas o único rapaz, eu é que ia sempre com as ovelhas.
Depois fiz a escola primária, fui estudar para Vila Real… segui a vida e nunca voltei à roda de oleiro. Trabalhei 43 anos numa empresa de distribuição, era vendedor de produtos alimentares e domésticos. Saía daqui às 07h30 da manhã e chegava às nove ou dez da noite. Trabalhava muitas horas por dia e fazia muitos quilómetros… o serviço já estava a ficar muito puxado, andava à rasca da coluna. Decidi vir para a reforma, também a pensar que podia ter aqui em Bisalhães algo com que passar o tempo.
Nós temos aí muito trabalho na agricultura para eu me entreter, mas eu também estava a pensar nisto do barro. Nem era por causa de dinheiro; era mesmo a ver se isto não acabava.
Então quando vim para casa decidi experimentar para ver se conseguia fazer alguma coisa. No início não conseguia fazer nada. Mas fui praticando, até que lá consegui ir fazendo umas coisinhas. Tanto que acabei logo por ir à Feira de São Pedro com as minhas peças. Se eu soubesse que dava jeito e que conseguia fazer isto tinha vindo embora mais cedo.
Mas isto não é fácil. E eu estou aqui com tentativa e erro, a fazer do que me lembrava ver fazer o meu pai. Não tenho ninguém aqui ao lado a explicar. Seria mais fácil. E eu achava que nunca ia conseguir fazer algumas peças, como a bilha de segredo, por exemplo. Mas, afinal, consigo.
É uma peça em que temos de pegar sete vezes. Primeiro fazemos uma parte do corpo. Depois, quando nem está muito verde nem muito seca, fazemos a outra parte, que tem de ficar idêntica. Depois é preciso fazer dois bicos aqui, mais dois bicos, e já lhe pegamos quatro vezes. Depois faltam as duas argolas. E já vai em seis vezes e nem percebe. Depois é preciso gogar, isto é, fazer desenhos. Depois é preciso pôr ao sol, secar e depois cozer. Esta peça dá muito trabalho.
E aprender a fazer os bicos, por exemplo? Sem ninguém aqui ao lado a dizer como se faz, temos de ir experimentando. Lembro-de de uma vez estar quase quatro horas a tentar fazer os bicos para a bilha, até saírem direitos e aprender como se faz. E tem sido assim com tudo. Mesmo uma assadeira. Não parece, mas não é fácil de fazer. Temos alguidares! Ainda hoje, se tento fazer um alguidar muito grande, para dois quilos de arroz ou mais, tenho dificuldade. A sorte é que ninguém os pede.
Mas lá vou conseguindo fazer e por isso ando entusiasmado. Estou com a roda do meu sogro, já muito velhinha. Ele já a tinha ido buscar a um tio, ou avô, nem sei. É mesmo antiga, mas isto dura muito. É feita de pau de vidoeiro, dura muito. Mas já se está aqui a desfazer dos lados, precisava de uma nova, mas nem sei quem ainda faça assim uma roda tradicional. Sei que agora também há rodas elétricas, mas este é que é o tradicional.
Vamos lá a ver como as coisas evoluem. Eu achava melhor era mesmo arranjar uma máquina para amassar o barro. Porque picar o barro é o mais difícil, acho que é mesmo a parte mais dura que tem a arte. Nós ainda fazemos como os antigos, como se fazia há mais de cem anos.
Gosto muito de estar a fazer isto. Porque o trabalho me está a correr bem. Vejo que estou a conseguir fazer. E olho para a minha sogra e penso: nem ela pensava que ia voltar a gogar barro outra vez. Isto é bom para ela, bom para nós, bom para todos. Ela já não pica o barro, claro. Também não é a minha mulher que o faz, que anda à rasca dos braços. É o meu filho quem me ajuda, quando chega a casa do trabalho e ainda tem tempo para ajudar.
Eu lá vou fazendo. E vou vendendo, que felizmente a louça vai tendo procura. Sobretudo os alguidares para o arroz e a assadeira para as batatas. E a louça fina, decorativa também. E é bom saber que a arte vai continuando. Nós continuamos a fazer, tudo em família, como era antigamente. Eu e o meu filho picamos, a minha mulher peneira, a sogra amassa o barro e ajuda a gogar a louça.
Quando é para cozer, juntamo-nos aos outros oleiros que ainda fazem: o meu sobrinho Miguel e o meu cunhado, Constantino, e o Ti Cesário, que também se junta a nós para cozer as peças que ainda vai fazendo. O Ti Querubim coze no forno dele, e coze sozinho. Ainda há o Jorge Ramalho, que também trabalha nisto o tempo inteiro, mas também para lá anda sozinho, não quer saber de ninguém. O problema é que os oleiros não falam uns com os outros. Não se dão bem, e é uma pena.
Pensar que já houve tantos oleiros aqui e agora não chegam aos dedos das mãos… Já muita coisa se perdeu. Bem sei que o tempo não era o mesmo, nem ninguém quer regressar àquela miséria de antigamente. Nem dinheiro havia, sequer. As pessoas daqui iam por essas aldeias fora trocar a louça por o que havia. Iam para a Campeã, trocavam por castanhas, batatas e carne de porco. Se iam para os lados de Murça, traziam azeite e vinho….
Foi quando as pessoas começaram a ir trabalhar noutras coisas, para a GNR, para cantoneiros, ou iam para a cidade que o barro se começou a perder. Como se perderam festas importantes que se faziam aqui.
Bisalhães era muito conhecido pelo baile que aqui se fazia no carnaval – o mais famoso até era o da quarta feira de cinzas, chamava-se a Vareira. Agora não há nada. Também quase que já não há a tuna. Antigamente todos os oleiros andavam na tuna rural. Agora também somos meia dúzia de gatos pingados, mas lá continuamos. Ainda vai acabar tudo: a arte e a tuna. Mas cá estamos a tentar evitar isso.
Mais sobre Bisalhães
O barro preto de Bisalhães ainda é o que era
São cada vez mais raros os momentos em que um dos fornos escavados na terra em plena aldeia de Bisalhães, em Vila Real, se enchem de peças de barro, se vestem de fogo e de fumo, e cozem a louça que se tornou um símbolo de concelho e Património da Humanidade. São raros, mas existem e resistem. A tradição do barro preto de Bisalhães ainda é o que era -, e há quem esteja empenhado em que continue a ser.
Querubim Rocha, o oleiro persistente
De manhã à noite, sete dias por semana, não há dia que Querubim Rocha não se vá sentar atrás da sua velha roda e produzir peças de olaria negra de Bisalhães. Tem 82 anos, trabalha desde os nove. Começou a trabalhar para outros, mas soube ser habilidoso e crescer na arte. Agora está quase sempre sozinho na sua oficina, onde há sempre muitas peças para vender. Ultimamente, aos sábados, começou a ter a companhia do filho.
Miguel Fontes, o mais jovem oleiro
Técnico de informática, funcionário público, foi depois da morte dos dois avós, ambos oleiros, que Miguel Fontes pensou no que iria acontecer ao barro que ainda tinham armazenado. Resolveu experimentar a roda do avô e as peças foram saindo, foram ficando cada vez melhores. Foi durante muitos anos o único oleiro a cumprir a velha tradição de ir vender a louça na Feira dos Pucarinhos, que se realiza todos os anos por altura do São Pedro no centro da cidade de Vila Real.
Lídia Pires, a mulher do oleiro
O papel das mulheres na olaria de Bisalhães foi sempre fundamental, mesmo que quase invisível. Afinal, elas é que faziam tudo: preparavam o barro, iam à lenha, decoravam as peças, vendiam-nas. Os homens não saíam de trás da roda, e elas faziam tudo o resto – e ainda tinham energia para dançar. Viúva há mais de 20 anos, Lídia Pires regozija-se com a investida que o genro começou a fazer na olaria.
Cesário Martins, o mais velho na arte
Foi militar da Guarda Nacional Republicana, cargo que desempenhava com empenho e zelo, mas nunca descurou a arte que sempre viu fazer toda a gente da sua aldeia. Com 91 anos, continua a levantar-se todos os dias para se sentar junto à velha roda onde já fez um incontável número de peças. Agora faz peças mais pequenas, e coze louça cada vez menos vezes. Mas não quer parar.
Albano Carvalho, o escultor
Com 91 anos de idade, desde que enviuvou, há pouco mais de um ano, que Albano carvalho, o escultor de Bisalhães como todos o conhecem, nunca mais pegou no barro. Ainda tem um balde cheio, preparado pela mulher. Mas a morte da companheira de toda uma vida tirou-lhe a vontade de “continuar a inventar”. “Nunca ninguém me ensinou”, explica.