Ribatejana, licenciada em arquitetura, doutorada em habitação, investigadora e diretora de mestrados na Escola de Arquitetura de Sheffield, no Reino Unido, Célia Macedo, 41 anos, trocou tudo para ir para São Pedro do Corval aprender a arte da olaria e trazer o género feminino à atividade. Eis o seu testemunho.
“Estou a abrir caminho para que mais mulheres venham e sejam oleiras”
Chamo-me Célia Macedo, nasci há 41 anos no Ribatejo, na zona de Torres Novas/Entroncamento. Tenho mais duas irmãs. Aos 17 anos fui para Lisboa para estudar arquitetura, e no fim do curso ainda fiquei lá a trabalhar durante dois anos. Mas depois quis ir fazer um mestrado em construção sustentável, porque era uma coisa que na altura não se oferecia muito no currículo de arquitetura em Portugal. Fui para Oxford, e estava a fazer o mestrado enquanto trabalhava no atelier.
Entretanto, comecei a interessar-me por investigação e iniciei um doutoramento em arquitetura ligada ao desenvolvimento internacional. O meu doutoramento foi sobre habitação de baixo custo em Luanda, todo o projeto foi sobre Angola. Fui para Angola e comecei a trabalhar com os Arquitectos Sem Fronteiras, no branch do Reino Unido. Este trabalho levou-me ao Nepal, Colômbia, África do Sul e Gana; estive envolvida numa série de projetos interessantes. Comecei a fazer parte da equipa base dos Arquitectos sem Fronteiras, e depois recrutávamos voluntários para integrarem as missões.
Depois disso, mudei-me para Sheffield, onde estrava a trabalhar como investigadora na área da arquitetura. Fiquei diretora do mestrado de Urban Design na Sheffield School of Arquitecture; mas, entretanto, já tinham passado muitos anos, tinha imensas saudades de Portugal. Sempre tive. Cada ano que passava eu dizia é no próximo ano que volto para Portugal. Mas depois o tempo passava, eu vinha nas férias, mas…
Acabei por perder a minha mãe quando estava fora. E foi nessa altura que decidi que queria voltar. Comecei a questionar uma série de coisas na minha vida, a nível pessoal, que acabaram por afetar o lado profissional. Pensava: estou com uma carreira muito promissora, estou num lugar espetacular; mas não faz sentido se as outras coisas não estiverem também preenchidas.
O meu primeiro contacto com a cerâmica foi em Oxford. Iniciei as aulas de cerâmica um bocadinho para fugir ao stress. Estava na parte final do meu doutoramento, a escrever a tese, estava… nem sabia de mim. Aconselharam-me: vai fazer qualquer coisa, vais ver que te faz bem. Foi assim que apareceu a cerâmica. É uma coisa muito habitual, por lá toda a gente aborda o artesanato de uma forma muito diferente. Fui fazer um curso de fim de semana. Eram só umas horas, mas no primeiro momento em que toquei na roda apaixonei-me. Eu sei que parece cliché, mas é mesmo verdade; nunca mais voltei a afastar-me.
A minha primeira vez na roda correu logo muito bem. O meu professor na altura disse que não acreditava que eu nunca tinha mexido na roda, que “era impossível”; que o que eu consegui produzir nessa vez era de alguém que já tinha algum domínio sobre isso. Eu tenho uma explicação. Talvez seja porque eu sempre desenhei, portanto a coordenação do olhar com as mãos sempre foi uma coisa presente.
Entretanto, a cerâmica começou a ganhar escala, comecei a fazer as coisas melhor. Chegou uma altura em que estava sempre ansiosa para ir para o estúdio. Ia para uns estúdios partilhados, onde estava mais gente a trabalhar, e eu já gostava muito mais disso do que do meu trabalho na Universidade. E pensei: passa-se aqui qualquer coisa… se calhar este é o meu caminho.
Depois comecei a fazer investigação sobre o melhor sítio em Portugal para fazer uma aprendizagem da cerâmica tradicional portuguesa. Todo esse processo de decisão, entre pensar em mudar de vida e vir para Portugal demorou dois anos. Eu sou investigadora, portanto foi um processo muito criterioso e metódico. São Pedro do Corval foi a escolha óbvia, porque é o centro oleiro de Portugal e é o sítio onde há mais mestres oleiros. Efetivamente, aquele conceito do mestre oleiro ainda existe muito em São Pedro do Corval.
Cheguei em 2019. Não conhecia ninguém, não tenho qualquer tipo de raízes no Corval, nada. Apareci na olaria do mestre Joaquim Tavares. Contei-lhe a minha história, disse-lhe que queria aprender a trabalhar na roda dele, perguntei-lhe se ele me acolhia. E ele disse que sim, sentou-me na roda ao lado da dele, de vez em quando dizia-me “vê lá isto, olha lá aquilo”, “olha a grossura desta peça”, “agora faz assim”. E por ali fiquei quase um ano, ele nunca me cobrou nada.
O mestre Tavares também foi um acaso. Fui ter com ele porque sei que mais ninguém faz o que ele faz. Ele é um senhor especial, que está sempre muito aberto a passar a arte dele, o que é uma coisa que já não acontece com muita frequência em São Pedro do Corval, infelizmente. De uma forma geral, os oleiros têm muito trabalho e é difícil tirar tempo do seu trabalho para ensinar. E a roda é uma coisa que requer muita paciência e tempo. Eu vim já a saber trabalhar na roda e isso fez alguma diferença. Mas para alguém que começa a trabalhar do zero será muito difícil ter dedicação e tempo para se empenhar.
Estive ao lado do mestre Tavares até me sentir suficientemente confiante para me lançar sozinha. Procurei uma casa para alugar, montei o meu espaço em Santo António do Baldio, e um mês depois entrámos em confinamento, por causa da pandemia. Tinha acabado de chegar a minha roda (encomendei uma japonesa, igual à que trabalhava em Sheffield) e, de repente, tudo parou. Pensei que devia aproveitar a oportunidade para melhorar a minha técnica. Fui fazendo peças e dediquei-me também – bastante! – às redes sociais. Sabia que as redes sociais seriam elementos-chave para poder chegar às pessoas de uma forma geral. Nunca parei, nunca perdi força, nunca me senti frustrada.
Felizmente, comecei logo a receber encomendas e praticamente a viver disto. Não tenho grandes razões de queixa; trabalho mais agora do que trabalhava antes, mas … é o meu bebé. O mais difícil foi a implementação do negócio propriamente dito. Ainda hoje é um grande desafio que me tira imenso tempo. Por mim, podia ficar o dia inteiro a produzir.
Tive de fazer as coisas de uma forma eficiente, por isso desenvolvi uma coleção standard, com sete peças, pensadas para a cozinha portuguesa e inspiradas no Alentejo. Porque é mais fácil oferecer um produto fechado para as lojas, receber encomendas grandes e tratar da logística, do que ter dez pessoas a comprar só uma peça. Foi uma decisão que tive de tomar a determinada altura. Tenho peças em nove lojas em Portugal, espalhadas por todo o país, e tenho a minha primeira grande encomenda para os Estados Unidos a sair daqui a umas semanas. Também tenho encomendas prestes a entrar no Dubai e na Dinamarca. Uso sobretudo as redes sociais, e ajuda muito que eu fale e escreva em inglês de uma forma fluente.
Agora, estou mesmo a precisar de um espaço maior, que aqui já é muito apertadinho. Já fiz várias tentativas de mudança, mas é um problema muito grande aqui em Reguengos de Monsaraz. Existem armazéns, mas são demasiado grandes e eu não estou numa fase em que possa pagar uma mensalidade muito alta. Não existe nada de intermédio. Já tive reuniões com a Câmara Municipal, estou a tentar perceber se consigo ficar. Porque não quero sair daqui. É aqui que faz sentido continuar.
Até porque isto também se tornou um pouco uma missão de contrariar aqueles que me dizem que no interior de Portugal não vou conseguir fazer nada. Eu tenho procurado fazer o contrário, provar que é possível, que podem vir e que conseguem fazer vida aqui e que, aliás, a qualidade de vida melhora imenso.
No Corval toda a gente conhece toda a gente. Há um problema qualquer, depressa chegam a nós. Há muito mais entreajuda. Nos primeiros tempos, ainda em São Pedro do Corval, tinha às vezes pessoas a baterem à porta com sacos de laranjas e nêsperas e azeitonas e essas coisas assim. Era algo que eu até achava estranhíssimo, perguntava “mas o que é isto?”. Mas não. É normal. É um conforto que eu não tinha quando vivia em Lisboa, por exemplo.
Muito do trabalho que eu faço bebe nesta zona toda a inspiração. Muitas das minhas peças lembram o Alentejo, e acho que iria parecer descaracterizado se, de repente, começasse a levar o barro vermelho para outro lado. A olaria desenvolveu-se em São Pedro do Corval porque aqui havia muito barro, as pessoas escavavam-no da terra. Agora já ninguém faz isso, quase todos trabalham com barro espanhol que já aqui chega limpo e pronto a usar. Eu faço questão de continuar a trabalhar com matéria-prima portuguesa.
Uso barro de Porto de Mós, compro a uma fábrica familiar, trato os donos por tu. Eles vêm aqui trazer umas coisas, conversamos sobre a matéria-prima, perguntamos como vão as coisas. Eu acho que todo esse relacionamento é importante. Torna tudo muito mais genuíno, sustentável a todos os níveis. A fonte da matéria-prima é a cara das pessoas que trabalham para que esta matéria-prima chegue até mim. É isso que me importa, mesmo que fique um bocadinho mais caro. Quem compra as minhas peças sabe isso. E aceita.
Eu quero continuar no Corval. Se não conseguir, tenho de sair daqui. Mas há muita falta de apoio para quem quer vir para cá estabelecer-se. Tudo o que fiz foi completamente sozinha, com zero apoios. Cheguei a fazer um crowdfunding para comprar este forno. É uma pena que não haja espaços de coworking para pessoas que tenham negócios com características mais tecnológicas, por exemplo. Há desses espaços em Lisboa, no Porto, no Algarve. Aqui não existe nada, e aqui era o sítio onde deviam existir. Não há nada para atrair as pessoas. Mas todos os meses recebo várias mensagens, até de pessoas mais novas do que eu, a dizer para quando contratar alguém as avisar, porque gostavam muito de vir passar aqui uns meses.
Há também um outro grande desafio: trabalhar a mentalidade do povo português em relação àquilo que é o artesanato. Não concordo muito com o conceito do “novo artesão”, porque acho que se está a desvalorizar o artesão – não há o novo e o velho, há o artesão. Estar constantemente a referir os novos artesãos e a dizer o que eles fazem, quase que desvaloriza o trabalho que é necessário ser feito junto do artesanato e da cerâmica. O que é preciso é trabalhar a mentalidade, procurar o preço justo.
Depois, também temos a questão dos papéis masculino e feminino. Porque é que as mulheres também não trabalham na roda? Aqui no Corval, tradicionalmente, as mulheres pintam. Às vezes sinto que ainda não sou aceite como igual, mas não me importa. Eu faço o que faço. Tenho o meu público e falo para o meu público. Estou a abrir caminho para que mais mulheres venham e sejam oleiras, que é uma palavra que não se ouve muito no feminino.
No Centro Interpretativo da Olaria de São Pedro do Corval há uma espécie de exposição permanente, com uma representação de todas as olarias de São Pedro do Corval. E eu fui a primeira mulher a ter lá umas peças. Eu sou uma ativista. Todos temos as nossas lutas e causas próprias. Eu sempre me bati muito por isso, sempre tive muitos bons exemplos das mulheres na minha família. A minha avó materna foi das primeiras mulheres camionistas em Portugal. Ela era da Chança, perto de Portalegre, e na altura dos contrabandos so havia três mulheres a conduzir camiões.
A sensação de ter as mãos no barro é muito relaxante. Com a cerâmica, em particular, acho que é uma coisa com uma energia muito especial. Porque, se pensarmos bem, há milhares de anos que os nossos antepassados faziam exatamente isto – não numa roda elétrica, obviamente! -; trabalhavam a cerâmica para criar objetos que utilizavam no seu quotidiano. E, portanto, ter o privilégio de trabalhar com a matéria-prima que faz parte da nossa existência há tantos anos, e trabalhá-la praticamente da mesma forma, embora com ferramentas diferentes, é lindo.
Como é natural, apesar de gostar de viver no Corval, tenho saudades de muita coisa, também. Tenho saudades de todos os restaurantes de todas as nacionalidades aos quais tinha acesso antes. Eu sou vegan, e isso às vezes é um desafio. Mas tudo se arranja, nunca é um grande problema. Évora já tem uma escala que se aproxima desse tipo de vivência. Lisboa também não está assim tão longe (hoje em dia as distâncias já não são o que eram).
Tenho, também, saudades de viajar. Quando estava no projeto dos Arquitectos sem Fronteiras, todos os anos tinha uma missão fora, habituei-me a ter isso na minha vida. Com o regresso a Portugal, e o início da pandemia, isso deixou de acontecer. Mas é uma coisa que também está na minha lista. Soube recentemente que fui selecionada para uma organização europeia de artesãos chamada Crafting Business. Foram escolhidas duas pessoas de oito países para visitar várias feiras de Design e Artesanato a nível mundial. Eu vou à London Design Fair já em setembro… vai ser a minha primeira viagem, passado tanto tempo.
Passo muitas horas aqui no atelier. É onde eu mais gosto de estar. Mas às vezes também me faz falta estar com outras pessoas. É uma consequência da minha escolha. Passo muito tempo sozinha, mas é um tipo de trabalho que me exige muito isso, por isso aceito como fazendo parte do processo. As redes sociais também acabam por suavizar um pouco essa solidão. Falo, entre aspas, todos os dias com imensa gente.
Lembro-me bem do que senti na primeira vez em que trabalhei na roda, ainda em Londres. Foi paz. A roda tem a capacidade de abafar tudo o que se passa à volta. Ainda hoje, que faço isto de forma profissional, me traz a mesma sensação. Tanto que o processo de produção passa por várias fases e a minha fase favorita é esta, a da roda. Quando estou demasiados dias sem trabalhar na roda, porque tenho todas as outras coisas para fazer, sinto que preciso dela.
Há qualquer coisa de muito poético na roda. É o girar em torno do centro, constante; é o manter o controlo sobre as paredes de uma peça, porque se a mover um pouco vai estragar o equilíbrio todo. Não sei o que é, mas há qualquer coisa de terapêutico. Exige foco, meditação. Aconselho vivamente.
Acima de tudo, estou muito feliz com as decisões que tomei e acho que isso é o mais importante. Fazia tudo outra vez. Por vezes penso que devia ter vindo mais cedo. Mas, se o tivesse feito e não tivesse ido para Inglaterra, não teria começado a aprender cerâmica e não teria vindo parar aqui.
Perguntam-me, e foste fazer um doutoramento para quê? Eu sei que valeu a pena. Acima de tudo, acho que nós somos a soma de todos os momentos da nossa vida. Tudo conta, nada se perde, tudo serve um propósito. De uma forma ou de outra, faz algum sentido.
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Corval, a magia do barro
Há mais de duas dezenas de olarias em São Pedro do Corval, mas não chegam aos dedos de duas mãos os oleiros que sabem tudo da arte e se podem chamar de mestres. Nesta aldeia de Reguengos de Monsaraz tradição ainda é o que era, mas a sua reinvenção parece urgente – e já está a dar sinais no terreno.
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Maurício Rebocho, o radialista
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Rui Patalim, o oleiro
Cresceu no meio dos potes de barro, e não há nenhum exagero nisto. Rui Patalim é filho, neto e trineto de oleiro e um dos mais novos mestres oleiros de São Pedro do Corval. Trabalha muito, e muito rápido. E ainda assim não tem tempo para quase nada.
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Sandra Pinto, a vizinha
Nascida e criada em Lisboa, formou-se em geografia, mas foi professora durante apenas seis anos. Trocou a docência pelo figurado em barro e sonhava com uma casa no campo para a reforma. Decidiram ir viver na aldeia onde tinham uma casa de férias, e assim chegaram a São Pedro do Corval com duas filhas adolescentes.
João Teixeira, o permacultor cervejeiro
João Teixeira é natural de Sintra e trabalhou décadas no setor financeiro até que decidiu mudar de vida. Pensou em dedicar-se à agricultura e agora divide essa paixão com a arte de fazer cerveja. Escolheu São Pedro do Corval pela vida comunitária que ali encontra.
Peças de Cerâmica de Célia Macedo
Célia Macedo trocou uma carreira académica na arquitetura em Londres por uma aldeia no Alentejo, onde transformou a sua paixão pela cerâmica numa profissão. Produz cerâmica artística e funcional, usando métodos e técnicas tradicionais, dando-lhes um design mais contemporâneo.