Escrever versos é apenas uma das muitas facetas do mestre Joaquim Tavares, com 70 anos de idade e 50 de ofício – um ofício que partilha com o fascínio pelas plantas e pela fitoterapêutica. É o ultimo mestre a fazer ânforas e talhas de vinho em São Pedro do Corval e um sábio que diz estar sempre a aprender. Eis o seu testemunho.
“Sou um homem simples com uma cultura baseada no sítio onde vive e onde está”
Chamo-me Joaquim António Ramalho Tavares, nasci aqui em São Pedro do Corval há quase 70 anos, sou o mais velho de três irmãos. Sou oleiro há mais de 50 anos e sou muito mais coisas. Quando me perguntam o que sou e o que faço, tenho dificuldade em dizer. Costumo responder com uma quadra minha, porque também sou poeta popular: “Cinquenta anos de olaria / sempre no caminho das plantas / quase tantos de endireita / escrever quadras me encanta”.
Gosto de fazer muitas coisas. Tenho pena que o dia só tenha 24 horas, precisava que tivesse mais. Os meus dias são sempre diferentes.
Levanto-me de manhã e penso que preciso de ir buscar camomila, ou outra erva qualquer, não sei onde… Depois, alguém me liga a dizer que está à minha porta, porque está aflito com alguma dor e eu digo “espere aí meia horinha que já vou ter consigo”. A seguir estou a fazer os meus chás e as minhas mezinhas e depois vou para a roda. Depois chega alguém e eu lá interrompo o trabalho de oleiro e vou fazer mais uma consulta. Depois vou para casa ler, pesquisar, procurar informação. Às vezes estou às duas da manhã a dar consultas para gente que está na Austrália ou no Canadá… Enfim, os meus dias são sempre muito diferentes. Mas eu gosto muito de todas as coisas que faço. E não consigo ser uma coisa só, fazer uma coisa só.
A minha ligação com as plantas começou muito cedo, com o meu avô. Os meus pais andavam a trabalhar no campo, a dez quilómetros do Corval. E o meu avô era o manager daquela herdade. Ele conhecia as ervas todas, tinha sacos de plantas para dar às pessoas. Eu ficava fascinado quando via as pessoas a irem ter com ele. E ele ia-me dizendo: “Estás a ver esta erva? cheira muito mal, mas isto cura aquela doença assim assim”. Quando alguém lhe aparecia com um furúnculo, por exemplo, ele dizia: “Coze a casca de uma romã e faz assim e assado”. Aprendi muito com ele.
Quando fui para a escola primária já conhecia algumas ervas e depois comecei a pesquisar outras. Sempre tive esse interesse. E não estudei mais do que a quarta classe, não gostava nada da escola. Os meus pais diziam-me para ir “estudar para ser alguém”. E eu respondia que já era alguém, mas que queria era ser livre.
Aqui em São Pedro do Corval sempre houve muita olaria. Eu precisava de trabalhar, por isso fui para a olaria. Comecei a trabalhar aos 13 anos e foi numa dessas olarias que aprendi a trabalhar na roda. Foi com um mestre velhinho, que morreu há dois anos.
Quando aquela olaria fechou, eu ainda fui trabalhar para outra, e mais outra. Trabalhei em cinco olarias antes de abrir esta, por conta própria. Estou neste espaço com 200 metros quadrados, no Beco do Monteco, há 47 anos. Agora, se calhar, só saio daqui quando me levarem para debaixo da terra.
Este espaço tem cerca de 250 anos. Era um espaço onde se faziam talhas, ainda estão ali na parede os desenhos usados antigamente para tirar as medidas. Se era para uma talha de 80 almudes, tinha de se fazer até àquela altura, com aquela largura. Quando cheguei aqui para alugar isto e vi aquelas marcas, aquelas relíquias, pensei que era um espaço com história, que tem tudo a ver comigo. Aquelas marcações devem estar ali há 150 anos. Já foi remodelado algumas vezes, mas a história está cá.
Agora, sou dos poucos que ainda sabe fazer talhas aqui em São Pedro do Corval. Aprendi a fazê-las sozinho. O único que as sabia fazer era o mestre André. Eu pedi para ele me ensinar, mas ele não queria ensinar a ninguém, dizia que o saber ia morrer com ele. Eu dizia que achava mal, mas ele não queria ensinar. E eu punha-me à espreita, mas ele quando desconfiava que eu estava à espreita parava o que estava a fazer.
Mas entre o que eu o via a fazer e depois as minhas pesquisas, aprendi sozinho e agora faço até aquelas talhas grandes. Só não faço mais por causa da cozedura, são precisos fornos muito grandes, e aquilo é muito trabalhoso. E depois, há tantas coisas a procurar, pesquisas a fazer, plantas para apanhar, e consultas e isto e aquilo, que não faço muitas talhas. Teria de me dedicar a 100%, e isso não pode ser.
Eu estou sempre à procura de saber mais coisas. Não tenho nenhum canudo, mas já ganhei várias medalhas como fitoterapeuta. A última que recebi foi em outubro, dada pela European Academy of Sciences. Fui ao hotel Palácio Pestana em Lisboa, onde havia 30 países representados. E trouxe de lá a medalha de ouro. Eu nem sabia que eles existiam. Apareceram-me aqui, disseram que me descobriram porque eu vou muitas vezes às televisões e porque publico vídeos na internet. Começaram a acompanhar o meu trabalho, a pesquisar sobre o que eu fazia e deram-me uma medalha de ouro.
Eu já ajudei milhares de pessoas com os meus chás e as minhas mezinhas. Tenho resolvido os problemas de muita gente que aparece aqui com dores ou doenças crónicas e teoricamente sem cura. Não é verdade que a diabetes ou a doença de Crohn não têm cura. Já consegui curar muitas. Eu até alguns cancros consigo curar e as plantas fazem com que as pessoas deixem os ansiolíticos.
Às vezes perguntam-me porque é que não abro um consultório bonito, daqueles arrumados. E onde punha as minhas plantas? Elas aqui estão por todo o lado. Cá dentro, lá fora, no jardim… E depois estou aqui a mexer no barro, depois vou às plantas, depois tenho de vir para o barro outra vez. Fazia isso num consultório limpinho e sofisticado? Não obrigado, estou bem assim. A fitoterapia é uma sabedoria da Idade Média, não são as consultas de 80 euros que curam as pessoas.
Agora ando fascinado com a técnica de identificar na íris das pessoas os problemas que elas têm. Comecei a desenvolver isso há três ou quatro anos. Foi um professor doutor – acho que era do Chile! – que veio passar férias ao Alentejo e me disse que o que estava a fazer era iridologia. Depois, comecei a procurar nos livros e a arranjar uma vasta escrita sobre esta técnica. Tudo isto para mim é fascinante. Eu estou aqui para ajudar os outros.
Há uns meses esteve aqui uma senhora norte-americana que tem uma casa em Cascais. Apareceu-me aqui com uma dor nas costas. Eu resolvi isso com as mãos – chama-se quiroterapia, isto é, resolver com as mãos, com as patas. Com as mesmas patas que faço barro. Ela começou a insistir que eu devia ir com ela para Nova Iorque, que lá fazia muito dinheiro. Mas eu não me quero encher de dinheiro, eu quero encher-me de amigos. Eu disse-lhe que não ia com ela para lado nenhum. Digo isso a toda a gente: é aqui, em São Pedro do Corval, que eu desenvolvo as coisas.
E nunca vou desistir do barro. Eu sinto uma proximidade muito grande com o barro, porque o barro tem a ver com a terra, com o fogo, com o ar, com a natureza, com a civilização, com desenvolvimento, com cultura, com contradições. Tudo isso faz-me agarrar aqui ao Corval. É uma ligação que não se explica. Não conseguia estar noutro lado sem ser aqui em São Pedro do Corval. Porque eu nasci aqui, estive sempre aqui, é aqui que eu sinto as coisas. É no meio das plantas, no meio da natureza. A natureza é a minha casa.
Todas as pessoas que queiram vir para São Pedro do Corval são bem-vindas. Precisamos que as pessoas venham para aqui dar continuidade a esta cultura e a estas tradições que já têm séculos. Podem fazer as perguntas que quiserem e eu respondo às coisas dentro daquilo que eu sei. Quando não sei, digo que não é da minha área – se é que eu tenho alguma área! Acho que a minha área é São Pedro do Corval, que é a terra onde eu nasci e onde se calhar hei-de morrer.
Eu tenho dois filhos e três netos, já lhes disse que eles também deviam aprender. Tenho um neto com 25 anos, outro com 14 e outro com 9. Quando são pequeninos, todos querem mexer no barro; mas depois todos se aborrecem. O meu filho trabalha na agricultura. A minha filha tem uma olaria, é só para ela que eu faço barro cru. Já a avisei de que agora tem de ser ela a tomar conta disto. Ela diz que não tem tempo e eu pergunto se, quando estiver lá em baixo da terra, ela me vai ligar para o telemóvel… eu não vou durar para sempre!
Eu sinto que tenho de transmitir aos outros o que tenho aprendido ao longo da vida. É o meu dever. E eu gosto de falar daquilo que já aprendi, e que continuo a aprender, todos os dias! Sou mestre em algumas coisas, mas estou a aprender muitas outras.
Já tive muitos alunos, dou formação em muitos lados. Tive aqui duas mulheres de mais de 40 anos que quiseram aprender a trabalhar na roda. E aprenderam depressa. Qualquer pessoa pode aprender a fazer peças de barro, desde que tenha duas mãos e vontade. A Célia, uma professora que esteve 12 anos a dar aulas de arquitetura em Londres, fartou-se daquilo e veio para aqui. É uma pessoa excelente, considero-a uma segunda filha.
São Pedro do Corval tem menos de 1000 habitantes e é onde eu tenho menos pacientes. Mas não me incomoda nada disso. Alguns inventam-me nomes – que sou vidente ou bruxo! -, mas eu não quero saber. Sou Joaquim António Ramalho Tavares, nascido e criado aqui em São Pedro e mais nada. Sempre na procura da paz, do sossego, do bem-estar e da tranquilidade.
Quando eu morrer, gostava que se lembrassem de mim como um homem simples com uma cultura baseada no sítio onde vive e onde está. E que tenha muitos amigos à minha volta.
A vida devia ser coisa bela e deslumbrante sem termos de sofrer cada dia cada instante. Mas a vida não é nada disso A vida é aquilo que nós queremos no sítio onde nós estamos e para onde nós queremos ir.
O António Variações dizia “só estou bem onde não estou”. Mas eu estou bem onde estou, por isso quero continuar aqui.
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