Foi uma das primeiras rádios piratas lançadas em Portugal e continua a emitir diariamente, 24 horas por dia, a partir de São Pedro do Corval. Maurício Rebocho, 66 anos, professor primário, marionetista e divulgador cultural, é também a companhia das manhãs de todos aqueles que, espalhados pelo Alentejo e pelo mundo, têm nos seus discos pedidos um momento alto do dia. Eis o seu testemunho.
“Aqui ainda há espírito de comunidade”
Chamo-me Maurício Rebocho, nasci em São Pedro do Corval há 43 anos mais IVA, como costumo dizer. Isto é, tenho 66 anos. Fiz aqui a escola primária, o ensino básico, e ainda apanhei a telescola no primeiro e no segundo ano. Tínhamos aulas na Herdade da Revilheira, a seis quilómetros daqui. Depois fiz o percurso normal de ensino, na Escola Industrial e Comercial de Reguengos de Monsaraz; e posteriormente fui para Évora tirar Secções, que era obrigatório.
Fiz o curso do Magistério Primário e, uns anos depois, fiz Expressões Artísticas Integradas no Instituto Politécnico de Beja. Como também estava ligado à área de animação acabei por escolher uma área que me pudesse dar formação a outro nível.
Fui professor do ensino básico, estive colocado em 40 locais durante os 35 anos de carreira. Só vim para o concelho de Reguengos quase 15 anos depois de ter começado. Estive nos concelhos de Odemira, Vendas Novas, Alandroal, Redondo… praticamente em todo o distrito; só não estive em Arraiolos. Conheço bem o Alto e o Baixo Alentejo. Passei também por outros setores do ensino; e fui educador de infância aqui na minha terra. Abri o Jardim de Infância de São Pedro do Corval, onde estive um ano. Depois passei para a educação de adultos, onde estive não só envolvido na alfabetização, mas também a desenvolver projetos de animação. Estive no IPJ como técnico de animação – como estava ligado às associações culturais, acabei por ficar lá como técnico, durante quatro anos. E também sou marionetista – sou sócio da União Internacional da Marioneta.
Tenho muitas facetas, mas uma das mais antigas é esta aqui na Rádio Corval. As rádios locais, as rádios livres, eram proibidas; e a proibição era um estímulo. Sentimos a necessidade de projetar os valores culturais da localidade, nomeadamente a olaria. E, como as rádios nacionais não nos davam essa perspetiva e raramente cá apareciam, avançámos com a primeira rádio em 1986, ainda na fase pirata. Fomos das primeiras a nível nacional, e hoje em dia somos de certeza a única que continua a emitir a partir de uma aldeia deste país.
Começámos há 35 anos e, tantos anos depois, ainda cá estou. A rádio está ligada a uma associação cultural – a Casa da Cultura de Corval -, que ainda hoje existe. Essa era mais uma forma de projetar o nome de São Pedro do Corval, do concelho, da região.
Eu venho todos os dias à radio, menos ao domingo; mas às vezes até ao domingo tenho de cá vir atualizar os programas. Temos aqui muitos colaboradores, que nos mandam semanalmente vozes novas. A Radio Corval tem emissão contínua, sete dias por semana, e as manhãs são sempre em direto. Há quatro pessoas a fazer essas emissões.
O que fazemos aqui é verdadeiro serviço público. Somos a companhia de muitas pessoas que vivem no Alentejo e de emigrantes que estão por essa Europa fora. Os discos pedidos são uma instituição, as pessoas já se conhecem todas – e alguns, eu até já conheço pessoalmente, que vieram cá no verão.
Sou uma pessoa muito bem disposta, gosto muito de brincar. E gostava que a rádio funcionasse bem todos os dias, mas nuns dias há cortes de energia, noutros dias não funciona ou não conseguimos fazer uma reportagem. Se não houvesse tantos problemas, se calhar era mais divertido. Às vezes, todas essas preocupações tiram-nos do sério.
O que mais gosto de fazer na rádio são os programas de entrevistas, em que recebo pessoas aqui no estúdio entre as 11h00 e as 13h00. É o programa “Sons e Saberes” que faço já há cerca de dez anos. Agora tem sido mais sons do que saberes, que a pandemia tem-me impedido de ir fazer a cobertura de quase tudo o que acontecia no Alentejo. Mas tenho muita gente a vir a estúdio, pessoas a divulgar o que fazem – a poesia, o cante, fadistas, que vieram aqui no início da carreira e hoje têm grande projeção. Ali, naquela parede, está uma fotografia autografada da Sara Correia, que esteve aqui quando tinha uns 14 anos. É disso que eu gosto.
Também foi a Casa da Cultura de Corval que me levou a avançar nas marionetas e nos fantoches. Na altura, só havia apoio a atividades menos conhecidas, então começou por aí. Primeiro éramos um grupo, mas depois essas pessoas foram para outros locais, como Lisboa e Évora, e eu fiquei praticamente sozinho. Então, fundei uma companhia de teatro que se chama Maurionetas – juntei o meu nome, Mauricio à palavra marionetas. Desde 1989 que me dedico ao teatro de fantoches.
Neste momento, estar numa aldeia como o Corval é uma vantagem. Há uns anos não seria assim, mas com a facilidade que temos hoje, com todas as tecnologias, o Alentejo é, sem dúvida nenhuma, o melhor local para vivermos. É que São Pedro do Corval é uma localidade ainda muito pura, ligada ao campo. Temos aqui tudo. Estamos a dois minutos do centro da cidade de Reguengos de Monsaraz; estamos a 30 minutos de Évora; e a hora e meia de Lisboa. E a qualidade de vida aqui é superior.
Estamos numa aldeia no Alentejo onde ainda encontra uma rádio em funcionamento. Há música e coletividades como a Sociedade Columbófila ou a Sociedade União e Progresso. A vida cultural nesta terra era muito mais rica do que é hoje, mas foi-se perdendo porque a população desapareceu. Nos últimos anos houve um retomar, não só daqueles que tinham abandonado a localidade, mas também de outros que escolheram o Corval para viver.
Preocupa-me que a atividade artesanal esteja em perigo, mas ainda estamos a tempo de a salvar. No meu trabalho de Licenciatura em Expressões Artísticas Integradas fiz um trabalho sobre a olaria que gostaria de ter publicado.
Agora já está desatualizado, mas já preconizava que as escolas e as atividades extracurriculares de São Pedro do Corval e do concelho de Reguengos deveriam ter uma componente com ensino de olaria tradicional. Isso ainda não foi feito aqui, ao contrário do que já aconteceu no distrito de Beja, em que o cante foi levado para a escola. Neste momento, o cante está salvaguardado.
Agora é preciso salvaguardar a olaria. A cerâmica nunca acabará, haverá sempre máquinas. Mas, se não houver mais aprendizes, vai ser mais difícil conseguir a sobrevivência do artesão oleiro. A salvaguarda não se faz com cursos sócio-profissionais de dois ou três meses. Têm de ser os oleiros mais velhos a serem apoiados para que durante dois ou três anos possam dar formação àquelas pessoas.
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João Teixeira é natural de Sintra e trabalhou décadas no setor financeiro até que decidiu mudar de vida. Pensou em dedicar-se à agricultura e agora divide essa paixão com a arte de fazer cerveja. Escolheu São Pedro do Corval pela vida comunitária que ali encontra.