Nascida e criada em Lisboa, formou-se em geografia e foi professora durante apenas seis anos. Trocou a docência pelo figurado em barro e sonhava com uma casa no campo para a reforma. O fim do vínculo contratual do marido, jornalista, impeliu-os a mudar de vida. Decidiram ir viver na aldeia onde tinham uma casa de férias, e assim chegaram a São Pedro do Corval em 2012, com duas filhas adolescentes. Eis o seu testemunho.
“Vir para o Alentejo ajudou muito a minha criatividade”
Sou a Sandra Pinto, tenho 48 anos, e moro no Corval desde 2012. Faço figuras decorativas em barro, e ter vindo parar ao maior centro oleiro de Portugal foi uma feliz coincidência. Não foi por haver tantas olarias que nos mudámos para aqui. Mas, tanto eu como o meu marido, éramos apaixonados por esta região.
Uma altura viemos passar um fim de semana a Reguengos de Monsaraz e gostámos tanto que comprámos uma casa para podermos vir cá passar uns dias nas férias. Vínhamos para cá no verão, nas férias da escola, aos fins de semana. E dizíamos que um dia havíamos de nos mudar para cá.
A oportunidade surgiu se calhar um pouco mais cedo do que estávamos a contar, mas não a perdemos. Aos 40 anos deixámos tudo para trás. Quando viemos, muitos amigos perguntavam se tínhamos noção do que estávamos a fazer. Mas para fazer uma coisa destas é preciso ser um bocadinho louco, não? E não nos arrependemos.
Mudámo-nos para o Alentejo em 2012. Viemos para a casa de férias que tínhamos no centro da aldeia de São Pedro do Corval – uma casa pequenininha, só com um quarto. Agora está em Alojamento Local, é a Casa do Compadre. Começámos a procurar uma casa maior para nós, e encontrámos uma em Santo António do Baldio. Na altura estava em ruínas, mas ficámos apaixonados não só pela paisagem como também pela localização. Estamos no fim da rua, no fim da aldeia. Estamos isolados, mas não demasiado isolados. Era perfeita para nós.
Nós queríamos fugir de toda aquela azáfama da cidade. Queríamos fugir daquele stress casa-trabalho-casa, da confusão. E isso desapareceu por completo. No final de contas, acabamos por trabalhar mais aqui, o que é curioso. Mas não temos aquela sensação de ir para o trabalho.
Eu já trabalhava na área da cerâmica, tinha uma oficina em Lisboa, vendia as minhas peças em feiras de artesanato. Mas a minha formação não tem nada que ver com isto. Eu tenho uma Licenciatura em Geografia. Ainda dei aulas durante seis anos, mas cansei-me de ser stock do Ministério da Educação e comecei a dedicar-me ao artesanato. Comecei com um curso simples, uma oficina básica de cerâmica. Claro que depois já fui fazer alguns updates e cursos de formação. Passei por muitas fases; passei pelas artes decorativas, mas para mim não deu. Não era apaixonante. Fazer estas figuras é. Estas peças e este tema, o Alentejo, surgiram só com a mudança. Vir para o Corval ajudou, em muito, a criatividade.
Quando o meu marido rescindiu o vínculo contratual estava indeciso se devia procurar trabalho ou não. E eu disse-lhe: “nós vamos mas é embora para o Alentejo e eu vou fazer estas figuras”. E mostrei-lhe a primeira peça. Disse-lhe para confiar, porque a maior parte das pessoas faz outro tipo de arte figurativa, faz maioritariamente arte sacra. Isto é um nicho, é uma coisa diferente. Eu acreditava que ia correr bem.
Com o tema Alentejo, comecei a trabalhar os vizinhos, os pastores… trabalho sobretudo a expressão corporal, as minhas figuras não têm rosto. E está a correr muito bem, temos tido muita aceitação. O que até é uma surpresa, porque isto é um nicho de mercado e um tema muito específico. Temos dois tipos de público: aquele que gosta muito da região e procura peças específicas como o compadre deitado ou o Cante Alentejano. E depois temos um público mais abrangente que procura os vizinhos, os casais à porta… Acredito que às vezes as pessoas compram não só pelo tema Alentejo mas também por aquilo que a peça transmite.
Seja como for, é um público essencialmente nacional, até porque é muito difícil transportar estas peças. Mas vendo de norte a sul do país, e sei que há alentejanos espalhados pelo mundo inteiro. E vendo também a pessoas que não são de cá, mas que gostam do que vêem. Há muita gente apaixonada pela região.
Entretanto, não queríamos que a economia familiar ficasse dependente dos resultados na cerâmica. Na altura, quase ainda não havia alojamentos turísticos aqui; mas achávamos que, tal como nós nos tínhamos apaixonado pela região, mais gente iria sentir o mesmo.
Depois de termos remodelado a nossa casa, colocámos a Casa do Compadre no Alojamento Local. Percebemos, pela aceitação do público, que era um investimento a fazer. E depois fomos procurando casas que estivessem como a nossa, em ruínas, mas onde, depois de uma restruturação, fosse possível manter a traça original de uma casa alentejana, mas com algum conforto. Depois da Casa do Compadre veio a Casa da Comadre, aqui no Baldio; depois a Casa do Lêntejo; e, por fim, a Casa dos Vizinhos. Além deste grupo de casas, a que chamamos de Casas de Taipa, e que são nossas, estamos a fazer a gestão de mais duas casas.
Eu nem sei dizer o que é que eu mais gosto no Alentejo. Acho que gosto de tudo. Da paisagem, que é magnífica; da gastronomia, que é fantástica; do vinho, que é ótimo… E depois estamos muito próximos de Lisboa; num instante estamos em Évora; estamos próximos de tudo aquilo que pode fazer falta. Mas não estamos em contacto direto com essa realidade. Faz-se uma quebra que eu acho muito importante. Aprendemos a viver sem muitas coisas que, de repente, percebemos que não nos fazem falta. E percebemos que esse tempo pode ser dedicado a outras coisas. Ir ao centro comercial deixou de fazer falta, pura e simplesmente. É algo perfeitamente secundário, e se precisarmos de alguma coisa em específico também é fácil resolver.
Para nós é fácil, para os filhos depende. Não é fácil vir com adolescentes, com crianças deve ser mais fácil. Os adolescentes estão mais identificados com os pares, com os amigos, e isso é um desafio. Nós temos duas filhas, hoje uma tem 23 anos e a outra 21. Para a mais nova foi muito fácil, porque ela é muito aventureira. Mas para a mais velha foi complicado. Mas depois acabou por perceber que viver num sítio destes lhe dá uma autonomia e uma liberdade que no meio urbano seria mais difícil de obter. Poderem andar sozinhas sem grandes receios; e, mesmo em termos de amigos, rapidamente perceberam que era fácil fazer novos amigos e manter os antigos que importam.
E quando cresceram, e se tornaram adultas, perceberam que conseguiam arranjar um trabalho mal acabassem o curso, o que até pode parecer estranho num sítio destes. Talvez porque, influenciadas por aquilo que fazemos, apostaram na área do turismo. E, desde que nós começámos com a Casa do Compadre até hoje, as unidades turísticas aumentaram muito. Aqui há muito trabalho; há é falta de mão-de-obra.
Elas foram tirar o curso na Escola de Turismo de Lisboa, porque em Évora não tinham o que queriam, e ficaram alojadas em casa de familiares. Mas assim que acabaram o curso quiseram voltar e já arranjaram emprego. Vão muitas vezes a Lisboa – vão mais vezes do que nós, sentem mais a falta da cidade, mas acho que voltar para lá não está nos seus horizontes. Pelo menos para breve.
Nós quando viemos para o Alentejo ainda abrimos uma loja em Évora – por isso, o site onde vendo as nossas figuras chama-se D’ Évora com amor. Mas foi um projeto que não correu bem. Teria de ser feito com outros colegas. Sozinha não é possível, estava sempre a ser interrompida pelo público. E, para mim, também não foi aliciante, porque na verdade foi trazer um bocadinho da cidade cá para baixo. Foi trazer rotinas, abrir a loja, fechar a loja, horários.
Por isso viemos para o Corval trabalhar só com o espaço da oficina. E, depois de fecharmos a loja, metemo-nos nas Casas de Taipa. Foram anos consecutivos a olhar para casas e para obras. Agora estabilizámos um pouco, não temos no horizonte procurar mais casas, fazer obras, equipar casas. Agora estamos a fazer aqui um showroom com o meu trabalho. Também estou a pensar experimentar a roda e a olaria.
A Célia Macedo é uma corajosa, porque aqui ainda é um trabalho de homens, as mulheres só fazem pintura. É difícil arranjar formação na área, os mestres já estão velhinhos. Não sei até que ponto poderei aplicar depois ao meu trabalho, mas gostava de fazer uma formação dentro da área. É sempre algo que nos enriquece.
A experiência de viver numa aldeia está a ser muito boa. Temos de nos dar a conhecer, à comunidade e à aldeia, devagarinho. Nunca deixamos de ser um pouco “estrangeiros” quando vimos para um espaço tão isolado. Aqui toda a gente se conhece e quando aparece alguém de fora a pergunta é o que é que esta gente vem para aqui fazer? Mas agora já estão mais habituados…
O que é preciso é saber estabelecer limites – nós não fazemos parte das histórias deles, das suas relações ou dos seus atritos -, e as pessoas são ótimas. Desde o início que tem sido uma coisa fantástica, sabemos que as pessoas estão disponíveis para tudo o que nós precisarmos.
Neste momento, a prioridade é concretizar o showroom das nossas peças. Por enquanto tenho poucas porque não tenho conseguido fazer stock – estou sempre a dar resposta a encomendas. Mas queria ver se este verão conseguia tê-lo minimamente recheado e depois fazer divulgação junto das casas e trazer pessoas para visitar o projeto. Estar sempre fechada em espaços de oficina e só falar pelas redes sociais acaba por ser castrador. Faz-nos falta o contacto com o público, que nos dá ideias para as peças. Eu gosto dessa interação.
Uma das peças que eu mais gosto de fazer é a das três vizinhas. Faço as senhoras sempre com diferentes expressões corporais. Depois gosto de ouvir as histórias que as pessoas imaginam ao olhar para a peça: “esta vizinha está a dizer isto, aquela está a pensar aquilo….”
E fazer estas figuras aqui no campo, nesta envolvente, ouvir as ovelhas a passar, ter uma mão-cheia de galinhas, ir buscar uns ovos… E, estar num sítio onde as estações do ano são tão diferentes. A minha estação preferida é a primavera. No verão o calor é muitas vezes insuportável – tomámos muitos banhos de mangueira. Agora vamos dar uns mergulhos ao Alqueva, mas nunca é o conceito de ir passar o dia à praia, como se faz no Algarve. Os turistas têm de perceber isso. Aqui é diferente. Aqui é melhor.
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