Há mais de duas dezenas de olarias em São Pedro do Corval, mas não chegam aos dedos de duas mãos os oleiros que sabem tudo da arte e se podem chamar de mestres. Nesta aldeia de Reguengos de Monsaraz tradição ainda é o que era, mas a sua reinvenção parece urgente – e já está a dar sinais no terreno. Há gente que veio de longe e escolheu ficar, e há os que teimam em não sair ou que acreditam que uma aldeia no Alentejo é um bom sítio para criar uma cerveja ou um gin. No Corval há, acima de tudo, uma comunidade. E haverá, sempre, a magia do barro.
É todos os dias assim. Lá pelas 6h30, seja de verão ou de inverno, Rui Santos é o primeiro a chegar à olaria O Patalim, uma das 22 que têm portas abertas na freguesia de São Pedro do Corval, em Reguengos de Monsaraz.
A carrinha atravessa o portão largo, fica estacionada num átrio de terra batida. Rui Patalim, como assina as suas peças, é o primeiro a abrir a porta. A chave, essa, fica na porta para quem vier a seguir. E só de trabalhadores diretos, na sua olaria, serão mais 11 a entrar. Depois, também chegarão os trabalhadores que acompanham o irmão, Egídio, e a irmã, Noélia, cada um com a sua olaria, ali naquele mesmo átrio.
O barro tem a ver com a terra, com o fogo, com o ar, com a natureza, com a civilização, com desenvolvimento, com cultura, com tradições.
Mestre Joaquim Tavares
A Patalim é uma das mais antigas olarias de São Pedro do Corval. Os fornos antigos, ligeiramente escavados no solo – mas onde cabia muita louça e um homem de pé! -, ainda lá estão para o comprovar. Em tempos mais recentes, Rui Santos até tinha transformado aqueles fornos numa espécie de museu, onde pôs umas figuras de barro a contar a história de um ofício que é mais velho do que a memória, mas que ainda é o presente, o dia-a-dia, de Rui Patalim. Mas uma noite apareceu tudo partido – “foi uma brincadeira de gente inconsequente”, sugere o oleiro, desdramatizando a má surpresa. “Nunca mais tive tempo de reconstruir nada. Agora todos estes espaços são úteis para o meu armazém”.
Rui Patalim é o mais novo dos mestres oleiros de São Pedro do Corval, uma aldeia de Reguengos de Monsaraz e o maior centro oleiro da Península Ibérica. Continua a sê-lo nos dias de hoje, apesar de existirem menos de dez oleiros tradicionais e cerca de duas dezenas de olarias. É uma tradição antiga, milenar, justificada pela qualidade do barro existente na região. Hoje em dia, é também um ato de resistência, uma teimosia; mas também uma paixão.
Rui, 44 anos, aprendeu a arte com um tio e com o pai – que morreu precocemente num acidente de viação. Ainda sonhou ser arqueólogo, mas depressa desistiu. Percebeu que preferia a roda de oleiro aos livros e às salas de aulas. Dedicou-se à arte, e acrescentou mais uma fotografia na escada de retratos com que identifica cada um dos oleiros da família que ali desempenhou – e desempenha – a arte.
A galeria de fotos de família começa no bisavô, Francisco dos Santos Tristão; continua no avô Zé; no tio Teófilo; no tio Manuel; e continua nele próprio, no irmão Egídio e do filho dele, Bartolomeu. Rui também colocou no final da escada a foto do filho mais velho, Salvador. A foto foi tirada quando ele tinha 12 anos – mas quase que “foi obrigado”, admite Rui. Hoje Salvador tem 15 anos e não tem qualquer interesse em aprender a arte, ou trabalhar a roda. “Paciência. Pode ser que o Lourenço, o mais novo, queira aprender”, diz Rui.
Para já, está a ensinar a arte ao sobrinho, Bartolomeu. Com 28 anos, Bartolomeu ainda esteve sete anos a trabalhar em Tancos no regimento de paraquedistas. Mas, findo o último contrato, optou por regressar à aldeia, com vontade de aprender a arte e de se dedicar às suas pombas. Há, no Corval, uma Sociedade Columbófila muito ativa, com vários sócios que de dedicam a criar pombos e os enviam para competição. “Só tenho de as treinar, soltá-las duas vezes por dia, 45 minutos de cada vez, e elas regressam à minha chamada”, explica Bartolomeu, enquanto faz mais um jarro de barro que tem como destino os clientes da Casa Cubista.
A Casa Cubista tornou-se no mais importante cliente da olaria de Rui Patalim. Trata-se de uma empresa canadiana que tem entre os sócios o filho de um português, e que começou, “por brincadeira”, como diz Rui, a fazer pequenas encomendas a artesãos tradicionais. A ideia desta empresa é resgatar velhos saberes e dar-lhes uma roupagem moderna – na madeira, na tapeçaria e no barro, claro. Por isso as peças de Rui Patalim já não são decoradas com motivos tradicionais alentejanos, como searas, pastores e montes. Hoje em dia, 99% das peças que produz são decoradas com motivos geométricos e cores vibrantes.
Regina Cruz trabalha há quase 28 anos com Rui Patalim. Trabalha em olarias desde os 13, sempre na pintura. “Antes pintava muitos motivos tradicionais. Mas de há oito anos para cá tem sido só disto, riscas, riscas e mais riscas. Todos os dias, todos os dias, sempre, sempre. Às vezes, chego a casa e ainda vejo riscas”, conta Regina, entre gargalhadas.
E, enquanto mergulha o pincel na cor turquesa e faz mira à pequena marcação a preto que lhe limita a altura da risca horizontal que vai começar a desenhar, explica que este tipo de pintura é ainda mais exigente do que a tradicional.
“É preciso ter não só equilíbrio na mão, mas também equilíbrio na cabeça”, explica a artesã, acrescentando que na pintura tradicional “é mais fácil disfarçar um pequeno erro ou tremor” – prolonga-se a planície, acrescenta-se uma flor, aumenta-se a casa. Nas riscas desta linha moderna, a concentração é mais exigente. E se há oito anos bastava Regina Cruz para pintar as peças que Rui Patalim fazia para esta linha, agora uma pintora não dá conta do recado. Carla Godinho senta-se ao lado de Regina há meia dúzia de semanas. Anteriormente trabalhava noutra olaria – mas, “por causa da Covid”, acabou por ir parar ao fundo de desemprego. Felizmente, rapidamente arranjou ali um novo emprego.
Regina e Carla nasceram no Corval e sempre viveram na aldeia. Gostam de viver no Corval. Nunca quiseram sair. “Por acaso gosto de viver aqui, apesar disto estar um bocado parado. Mas aqui nasci, aqui fui criada, por aqui quero ficar”, diz Regina, que já viu as filhas a irem para Lisboa e a não voltarem. A filha de Carla, com 25 anos, ao invés, ainda está na aldeia e “não fala em sair”.
“O melhor de viver na aldeia é este sossego. Estamos aqui, vamos a casa almoçar e voltamos ao trabalho. Não perdemos tempo em transportes, não precisamos de cantinas”, diz Regina. E, quando é preciso algo que não haja na aldeia, vão a Reguengos, que já é uma cidade, ou, então, a Évora, “onde já há tudo”. É onde têm de ir quando há um problema e o Centro de Saúde já está fechado – fecha às 20h00.
Enquanto Regina e Carla vão mergulhando os pincéis na tinta, Rui e Bartolomeu continuam a mergulhar as mãos no barro, e a fazer aquela magia na roda que transforma um pedaço de terra numa peça que vai poder ir à mesa a servir água, vinho ou um refresco.
Os gestos não são sincronizados, porque os ritmos são diferentes. Estão ambos a fazer o mesmo tipo de jarros. Começam pelo corpo do jarro, montado numa base. Mais tarde colocarão o bico e a asa. Rui molda os jarros a uma velocidade estonteante. Bartolomeu faz de uma forma mais pausada. “É uma profissão difícil de aprender. Não é fácil”, diz o jovem de 28 anos que está a aprender a arte com o tio há dois.
Bartolomeu não consegue explicar o que é o mais difícil. “Eu acho que é tudo. Enquanto não se aprende bem, nada é fácil. São precisos muitos anos de prática, todos os dias”, afirma. E Bartolomeu Santos está disposto a fazê-lo. Começou a frequentar as olarias do pai e do tio aos 15 anos, mas depois a vida militar falou mais alto. “Quando fui para a tropa, não tinha muita ideia do que fazer. Mas ainda antes de sair da tropa decidi vir aprender as artes da olaria”, explica.
E ali está ele, numa roda ao lado do tio a aprender, a praticar muito e a tentar não desesperar com as dificuldades. ”A terra onde nascemos é sempre aquela onde gostamos mais de estar, e de viver. Vá para onde for, a minha casa é aqui”, conclui. E garante que vai continuar a aprender – e a praticar! – até merecer o epíteto de mestre.
Viver aqui [em São Pedro do Corval] é sobretudo viver em sintonia com a paz, algo que é muito importante para a vida saudável das pessoas.
Joaquim Cebola
Reinventar a roda
Para se ser mestre oleiro é preciso saber de tudo da atividade da olaria. Desde moldar o barro e fazer qualquer tipo de peça até aos processos de secagem, cozedura, acabamentos e pintura. A arte tem passado de pais para filhos. E, na Casa do Barro instalada na aldeia de São Pedro do Corval, é possível conhecer toda a história destas olarias. Em 1905, o Anuário Comercial indicava que a então chamada Aldeia do Mato era um dos centros oleiros mais importantes da região, estando nele registadas 30 olarias e 53 oleiros – um número impressionante para uma pequena povoação.
Hoje em dia os números impressionam menos, mas são igualmente significativos. Ainda há 22 olarias, mas o número de mestres oleiros não chega a 10. Também por isso Rui Patalim tem de trabalhar mais horas do que gostaria – por muito que queira, explica, não consegue encontrar ninguém que saiba trabalhar na roda. E ele tem pouco tempo livre para ensinar.
Na olaria de Rui Patalim, só os homens trabalham na roda. As mulheres asseguram a pintura. É assim na olaria O Patalim; é assim em todas as olarias ditas tradicionais. Célia Macedo, ribatejana, doutorada em arquitetura, investigadora em Inglaterra, chegou ao Corval em 2018 e começou logo a pôr tudo isto em causa. “Toda a gente tem os seus ativismos. E eu também tenho o meu. O de lutar para que as mulheres tenham um papel diferente”, explica.
Célia já tinha aprendido a trabalhar no barro, queria aprofundar a arte da olaria e a cerâmica tradicional portuguesa. Foi um dos últimos mestres do Corval que ainda sabe fazer as talhas para o vinho quem lhe abriu as portas e partilhou alguns dos seus segredos.
“O mestre Tavares foi de uma generosidade sem par”, diz Célia; que, depois de ter vivido uns meses num sótão em São Pedro do Corval, instalou-se em Santo António do Baldio e abriu o seu atelier de cerâmica. As dificuldades em arrendar casa também já chegaram ao Corval – pelo menos casas com um espaço amplo para montar oficina, e cujos preços de renda sejam comportáveis para quem está em início de atividade.
Célia Macedo esteve ao lado de Joaquim Tavares o tempo que quis e precisou. Viu-o fazer talhas, viu-o fazer potes de mel, jarros, pratos, cântaros, azeitoneiras, andorinhas, o que calhou. Joaquim Tavares sabe fazer – e já fez – um pouco de tudo no barro. Nunca se dedicou a ele em exclusivo – porque sempre se interessou pela fitoterapia que viu o avô praticar (ainda antes de saber que era esse o nome dado à técnica que estuda as funções terapêuticas das plantas e vegetais e os aplica na prevenção e tratamento de doenças).
Joaquim Tavares não pretende abandonar o barro. “O barro tem a ver com a terra, com o fogo, com o ar, com a natureza, com a civilização, com desenvolvimento, com cultura, com tradições. Tudo isso faz-me agarrar aqui a São Pedro. É uma ligação que não se explica”, diz o mestre. Mas, hoje em dia, e além de assegurar uma encomenda especial a que cede por perceber que é a ultima pessoa a saber fazer talhas na terra dos oleiros, Joaquim Tavares limita-se a fazer peças de barro cru para a filha, Dora Tavares, pintar e vender.
Célia procurou este saber tradicional e juntou-lhe os toques de contemporaneidade com que se identifica. Mais do que uma oleira, e daquelas que tem gosto – e um assumido prazer – em trabalhar a roda, a investigadora assume-se como uma ceramista. “O oleiro, por norma, não inclui a componente de design de produto e empreendedorismo; tende a ser um executante, que permanece anónimo das suas criações. Eu sou ceramista, a minha cerâmica é de autor”, argumenta.
Inspirada na tradição, Célia quis trazer para o Corval alguma modernidade. E, admite, também trouxe espanto, por encontrar na aldeia alguns costumes que julgava desvanecidos pelo tempo.
Não foi a surpresa de lhe deixarem laranjas e nêsperas à porta que lhe trouxe perplexidade – afinal, no Ribatejo onde nasceu também há aldeias, e na aldeia de Portalegre, terra natal da sua avó materna, também já era costume partilhar o que abunda no quintal. O que mais espantou Célia foi a emissão diária de um programa de discos pedidos na Rádio Corval – RC Alentejo. “Em algumas olarias o rádio está ligado naquela emissora. E as pessoas pedem as músicas mais incríveis. Mas o melhor é que parece que se conhecem todos e ligam só para desejar bom dia”, conta Célia.
Maurício Rebocho, fundador da Rádio Corval, há 35 anos, e um dos dinamizadores do programa de discos pedidos transmitido diariamente, confirma: “Ligam para dar os bons dias e para saberem uns dos outros. É uma forma de estarem ligados à terra, aos vizinhos, à comunidade”.
Os ouvintes da Rádio Corval já se conhecem uns aos outros – pelo menos de nome – e estranham quando não ouvem algum durante demasiado tempo. A Rádio Corval é ouvida no Alentejo, no país, no mundo. Os ouvintes conhecem os aniversários de uns e de outros, do tanto que os netos crescem, da carestia de preços na Suíça, dos estados de alma materializados em versos de candidatos a poetas populares. Os discos pedidos, afinal, são só o pretexto para a conversa, e os gostos não podiam ser mais variados: tanto se pede uma música de Frei Hermano da Câmara como outra da Rosinha. “É um programa que não pode falhar”, diz Maurício, apesar de gostar mais de fazer entrevistas.
“Nunca pensei que ainda existisse um programa assim”, confessa Célia Macedo. Desde que montou a sua oficina num anexo da casa alugada em Santo António do Baldio, Célia já não ouve a Rádio Corval, tida como a “única rádio que começou pirata e sobrevive a difundir a partir de uma aldeia” – garantia de Maurício Rebocho. “Difundimos 24 horas por dia, sete dias por semana; e as manhã são sempre em direto”, explica.
Há algo especial no Corval
Mas o Corval não é uma aldeia qualquer. Surpreendentemente, tem uma vida cultural bastante ativa. Não só uma rádio em funcionamento, como também uma sociedade columbófila, uma banda filarmónica e um coro polifónico. Joaquim Infante Cebola é um dos fundadores do coro, e lembra-se bem de como ele surgiu: porque alguém pensou que “seria giro juntar pais e filhos a preparar um coro para a festa de Natal”. A SUPA – Sociedade União e Progresso Aldeiamatense fez o resto.
Hoje em dia, o coro reúne-se para ensaiar pelo menos uma vez por semana, e prepara espetáculos para apresentar em igrejas, “onde a acústica é melhor”. Mas o repertório não é propriamente sacro. Aliás, o repertório é suficientemente eclético para agradar a miúdos e graúdos, portugueses e não só (que a comunidade corvalense recebeu alguns estrangeiros no seu seio).
Uma das mais recentes aquisições é Carla Velez, eleita Miss Queen Portugal em 2020 (trata-se de um concurso de eleição da representante de Portugal para alguns certames de beleza em todo o mundo). Depois de, aos 24 anos, ter ido para Lisboa estudar Turismo, e de há dois ter representado Portugal na Estónia, Carla Velez diz que precisa de São Pedro do Corval, a terra onde nasceu. “Quis conhecer-me a mim mesma, enfrentar novas realidades e conhecer novos horizontes. Vivi sozinha em Lisboa, viajei, quis superar-me e conhecer novas coisas que não temos no Alentejo. O motivo de regressar a casa foi procurar a paz. E eu preciso desta paz para conseguir seguir o meu percurso”, explica.
Joaquim Cebola também se refere a essa paz quando descreve a vivência no Corval: “Viver aqui é sobretudo viver em sintonia com a paz, algo que é muito importante para a vida saudável das pessoas. Por isso temos sido procurados por gente de todo o lado, estrangeiros inclusive”, afirma Joaquim.
Há algo de especial no Corval, que explicará o amor pela aldeia sentido tanto por aqueles que nela nasceram e nunca quiseram sair – como Marcelo Pinto, que achou que fazer um gin a partir de uma aldeia do Alentejo poderia ser uma boa ideia. Mas que também é sentido por aqueles que procuraram muito, muito, por todo o país, e vieram parar ao Corval, como João Teixeira, agora produtor de cerveja artesanal.
João saiu de Sintra e correu o país, a costa alentejana, a serra do Gerês e as terras do Algarve, e ainda algumas aldeias da raia, à procura de um sítio tranquilo onde se pudesse instalar. Acabou por fazê-lo em Santo António do Baldio, e está a produzir a cerveja duMato a partir de São Pedro do Corval.
Parece que a aldeia dá sorte aos empreendedores. Pelo menos é nisso que acreditam os lisboetas Luís e Sandra Pinto, que deixaram a vida da cidade depois dos 40 anos, e se mudaram com as filhas adolescentes para o Alentejo. Hoje fazem a gestão de meia dúzia de casas em Alojamento Local e vendem online figuras de barro que personificam o modo de vida alentejano. E foi também no que acabou por acreditar um dos filhos da terra, Daniel Tavares, filho do mestre Joaquim, que foi resistindo sempre aos trabalhos na roda. Ele é, claramente, um criativo como o pai – mas diz que tem mais talento no ferro e nas câmaras-de-ar velhas que transforma em malas de design exclusivo de todo o tamanho e feitio.
As malas feitas em borracha reciclada são uma ideia que Daniel partilha com a namorada Valentina Perrotta, uma italiana que chegou a Portugal em 2012 e que nunca mais quis regressar ao seu país. Foi através de uma bolsa europeia, o projeto Leonardo, que Valentina veio parar a Viseu. E foi depois de conhecer Lisboa, onde uma amiga tinha uma casa, que se foi permitindo ficar. Nunca mais voltou à sua cidade natal, Campobasso.
Agora, deixou-se convencer a ir viver para São Pedro do Corval. “Eu gosto muito de viver cá. Se não tivesse esta calma, esta tranquilidade, este tempo e disposição para fazer o meu trabalho, seria muito difícil avançar. Na cidade há muitas distrações”, diz Valentina. De vez em quando precisa de “ir à cidade” receber os estímulos que são úteis ao seu trabalho criativo. Mas é no Corval que gosta de acordar e olhar para o quintal antes de tomar o pequeno-almoço.
Daniel tentou viver com Valentina em Lisboa. Mas muita coisa o irritava: as vezes em que o carro era rebocado por causa do estacionamento; os Alojamentos Locais que se multiplicavam por todo o lado; o facto de não haver um tufo de erva para limpar um sapato no caso de pisar cocó de cão, diz, divertido. Mas o pior de tudo era não arranjar emprego sem ser nos call centers ou em restaurantes. Mudou-se para o Corval e trabalha na agricultura – é tratorista numa quinta. E tem tempo para ajudar Valentina nas malas, para ajudar o multifacetado pai nas suas infindáveis atividades e para acabar de reconstruir a casa da avó.
Um dia, Valentina desafiou o mestre Tavares a deixá-la experimentar a roda de oleiro. Daniel também quis ver se ainda se lembrava, 20 anos depois: “Afinal, já não sei nada. A roda não é nada como andar de bicicleta. É difícil”, admite Daniel. E também admite que o pai tem razão – que é preciso outros aprenderem para a arte continuar. Maurício Rebocho defende que a arte se aprenda na escola – “foi assim que o distrito de Beja conseguiu resgatar o Cante Alentejano”.
A terra onde nascemos é sempre aquela onde gostamos mais de estar, e de viver. Vá para onde for, a minha casa é aqui.
Bartolomeu Santos
Célia Macedo e Joaquim Tavares até já têm uma ideia pela qual batalhar. Instalar na Casa do Barro espaços de trabalho colaborativo que permitam que mais pessoas venham aprender e iniciar negócios. Afinal, no Corval, o mais difícil já está feito… e resiste: há uma comunidade a crescer, que procura futuro na olaria e fora dela. E, tal como o barro, o futuro molda-se. É essa a magia do barro.
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Joaquim Tavares, o mestre
Escrever versos é apenas uma das muitas facetas do mestre Joaquim Tavares, com 70 anos de idade e 50 de ofício – um ofício que partilha com o fascínio pelas plantas e pela fitoterapêutica. É o ultimo mestre a fazer ânforas e talhas de vinho em São Pedro do Corval.
Célia Macedo, a ceramista
Ribatejana, licenciada em arquitetura, doutorada em habitação, investigadora e diretora de mestrados na Escola de Arquitetura de Sheffield, no Reino Unido, Célia Macedo, 41 anos, trocou tudo para ir para São Pedro do Corval aprender a arte da olaria e trazer o género feminino à atividade.
Maurício Rebocho, o radialista
Foi uma das primeiras rádios piratas lançadas em Portugal e continua a emitir diariamente, 24 horas por dia, a partir de São Pedro do Corval. Maurício Rebocho, 66 anos professor primário, marionetista e divulgador cultural, é também a companhia das manhãs de todos aqueles que, espalhados pelo Alentejo e pelo mundo, têm nos seus discos pedidos um momento alto do dia.
Rui Patalim, o oleiro
Cresceu no meio dos potes de barro, e não há nenhum exagero nisto. Rui Patalim é filho, neto e trineto de oleiro e um dos mais novos mestres oleiros de São Pedro do Corval. Trabalha muito, e muito rápido. E ainda assim não tem tempo para quase nada.
Marcelo Pinto, o destilador
A experiência de um familiar que produz aguardente vínica em Baião levou-o a querer experimentar fazer uma destilaria em pleno Alentejo. Teria de ser em São Pedro do Corval, a aldeia onde nasceu e da qual nunca quis sair. Marcelo Pinto, 35 anos, abriu com a mulher um negócio familiar e lançou o Alqueva Gin. Ambos esperam que o negócio prospere e possa criar emprego para mais gente da aldeia.
Sandra Pinto, a vizinha
Nascida e criada em Lisboa, formou-se em geografia, mas foi professora durante apenas seis anos. Trocou a docência pelo figurado em barro e sonhava com uma casa no campo para a reforma. Decidiram ir viver na aldeia onde tinham uma casa de férias, e assim chegaram a São Pedro do Corval com duas filhas adolescentes.
João Teixeira, o permacultor cervejeiro
João Teixeira é natural de Sintra e trabalhou décadas no setor financeiro até que decidiu mudar de vida. Pensou em dedicar-se à agricultura e agora divide essa paixão com a arte de fazer cerveja. Escolheu São Pedro do Corval pela vida comunitária que ali encontra.