Cresceu no meio dos potes de barro, e não há nenhum exagero nisto. Rui Patalim é filho, neto e trineto de oleiros e um dos mais novos mestres de São Pedro do Corval. Trabalha muito, e muito rápido. E ainda assim não tem tempo para quase nada – nem para recuperar os fornos milenares que existem dentro da sua olaria. Eis o seu testemunho.
“Cabe-me tentar não deixar morrer esta arte”
Chamo-me Rui Santos, tenho 44 anos, e todos me conhecem como Rui Patalim. Patalim é o que chamavam aqui à olaria e adotei o nome. Esta era a antiga olaria do meu trisavô paterno, foi ele que a construiu. Temos registos em livro que a família está aqui desde 1856. Foi a primeira olaria de São Pedro do Corval.
Eu não me lembro de quando é que comecei. Nasci no meio disto, com oito ou nove anos já sabia fazer peças. Mas não me lembro de qual foi a primeira peça que fiz, nem com que idade. Só me lembro de ser esta a minha vida, sempre. Provavelmente até me mudaram as fraldas aqui nas bancadas dos oleiros.
Fui para a escola, andei a estudar em Reguengos de Monsaraz e até cheguei a pensar que podia seguir arqueologia. Mas, como não gostava de estudar, lembrei-me daquilo que o meu pai sempre dizia: se os filhos seguissem isto, seria um grande orgulho. Ele morreu muito novo, há 17 anos, num acidente de viação. E a verdade é que realizámos o sonho do meu pai, os três. O meu irmão Egídio é oleiro, e a minha irmã Nélia é pintora. Trabalhamos os três aqui, cada um na sua olaria.
Foi o meu pai quem me ensinou esta arte. Ele tinha aprendido com o meu avô e com um tio – o tio Teófilo – que era padrinho dele, e deu o nome ao meu pai, Teófilo Santos. É uma arte difícil de aprender. São precisos uns quatro ou cinco anos para se formarem mestres e começarem a produzir loiça em grandes quantidades.
São Pedro do Corval foi sempre um centro oleiro muito importante. Porque havia muito barro nesta zona. Não sei se este barro era melhor do que o de outros lados, sei que é muito bom. Apesar de agora, já há cerca de dez anos, não usarmos barro daqui. Compramos barro que vem da zona de Leiria. Para nós é muito bom, porque antes tínhamos de ir cavar o barro, prepará-lo, limpá-lo, eram coisas que demoravam muito tempo e precisavam de muita mão-de-obra. Agora é só comprar e começar a trabalhar. O barro chega em blocos, e nós passamos numa máquina para ficar redondo. É mais fácil de trabalhar.
Aqui no Corval ainda há 22 olarias em funcionamento, mas só há uns seis ou sete mestres oleiros. Muitas olarias funcionam com moldes, ou compram loiça a outras olarias e pintam… Nem toda a gente pega na roda. Nesta olaria sou só eu e o meu sobrinho Bartolomeu. Ele é filho do Egídio, tem 28 anos e está cá há dois anos. Ainda é um aprendiz mas já faz muita loiça, quase tanta loiça como um mestre. Também é filho e neto de oleiros, aprende rápido.
Eu peguei na roda desde cedo, porque foi o que eu sempre gostei. Aos 14 anos passei a estudar à noite e vinha para aqui trabalhar. O meu avô queria que desse a serventia, que é a parte dos fornos, pôr a secar a loiça, fazer os acabamentos, meter o engope (que é uma base branca, de caulino, antes de pintar), mas eu expliquei ao meu avô que não era disso que gostava. Eu gostava era da roda. Comecei na roda e nunca mais a larguei.
Aqui na olaria ainda fazemos algumas peças com as características do artesanato local, que tem muitas flores e motivos alentejanos, como os pastores, as ceifeiras e os montes. Mas o tradicional já praticamente não se vende. Felizmente, começámos a trabalhar numa linha mais moderna que significa 99% das vendas. E 90% é para exportação: França, Dinamarca, Austrália, EUA, Canadá, Nova Zelândia, Arábia Saudita, Singapura, Coreia do Sul, Emirados Árabes Unidos e Japão.
Esta linha é um sucesso. É de uns clientes nossos, a Casa Cubista. São uns canadianos, e um deles é filho de um português que nos encomendou umas pecitas, uma brincadeira. Mas correu tão bem que agora não tenho mãos a medir. E não tenho capacidade de contratar mais oleiros, porque não os há. A solução é trabalhar ainda mais horas. Venho para aqui às 6h30 e estou até às sete ou oito da tarde, todos os dias. Todos os dias mesmo. Não há cá sábados ou domingos. Temos férias uma vez por ano, e folgamos de vez em quando.
Entre serventes de fornos, pintoras, gente a fazer os acabamentos, a vidrar e a desenformar, trabalham 12 pessoas na minha olaria. Mas só eu e o Bartolomeu é que vamos à roda, e fazemos as peças, uma por uma.
Nós fazemos a peça, ela é colocada ao sol a secar um pouco antes de ir ao forno. De inverno pode demorar semanas a secar a peça; depende da humidade que temos. Depois de secar levam a base branca, são mergulhadas num caulino. E voltam a secar outra vez, mais uma ou duas horas, até estarem com resistência e capazes de serem pintadas. Depois de pintadas vão ao forno a cozer a mil graus, durante oito horas, e demoram 24 horas a arrefecer. Saem do forno, levam o banho do vidrado – que é o brilho – voltam novamente ao forno, mais oito horas, mais mil graus, mais 24 horas a arrefecer. Com todo este processo, na melhor das hipóteses, e no verão, uma peça demora uma semana a ficar concluída.
Todas as semanas tenho aqui camiões a levar loiça, não consigo dar mais resposta. Não tenho quem queira trabalhar. Mesmo para arranjar pessoas para a parte do forno, que é uma parte mais fácil de aprender, é muito difícil. Ainda ontem fui ao centro de emprego tentar arranjar pessoal, mas não se consegue nada.
Para se ser mestre é preciso dominar o processo todo, saber tudo sobre a olaria, desde a roda até ao forno; precisa de saber enfornar, desenfornar, vidrar. Isto são as coisas mais simples. O mais difícil é a parte da roda, porque é preciso praticar muitas horas, todos os dias. Eu sou mestre há 20 anos. Aprendi com o meu pai, eu ia fazendo e ele ia explicando. Dava-me sempre uma dica, uma palavrinha, faz assim, faz mais rápido – é uma profissão em que se está sempre a aprender.
E acho que é uma profissão que toda a gente pode aprender. Acho mesmo. Uns melhores que outros, uns mais rápidos, outros mais lentos, mas todos conseguem aprender mesmo que achem que não têm jeito.
Na minha família foram todos oleiros. Estão as fotografias todas atrás de mim. A última é a do meu filho mais velho, que tem 15 anos. Mas ele tirou essa fotografia contrariado. Ele vai ser tudo menos oleiro; deve ser um YouTuber ou alguma coisa do género. Não há maneira de se interessar. Por isso, só se for o meu filho mais novo. Mas só tem cinco anos, ainda é cedo para aprender. A melhor idade para começar são os 13, 14 anos. Mas em adulto também se aprende.
O meu pai foi daqueles oleiros que aprenderam a fazer mesmo tudo, desde a pequena peça até à maior, cântaros, ânforas, tudo. Eu já não tive essa necessidade, sou de outra geração. Consigo fazer peças grandes, mas não tenho essa necessidade. As ânforas não são feitas na roda. Começa-se na roda, mas depois vai-se fazendo um género de chouriços, que se colocam uns por cima dos outros para a ânfora alargar, e vai-se batendo com uma palmatória. Põem-se duas ou três fiadas e é preciso pôr a secar. E no fim de três ou quatro meses é que se faz o gargalo na roda, e depois se encaixa. Deve demorar uns cinco meses a fazer uma ânfora. Eu não as faço. Só faço o que rende mais e que eu gosto.
As peças que mais gosto de fazer são os jarros e os potes de mel. Não gosto de fazer peças muito simples e muito pequeninas, como as miniaturas, os copos de licor ou pratos para meter íman. Estou a produzir e parece que não passo do mesmo.
Gosto das peças maiores e de poder usar a técnica que aprendi com o meu pai, que dá mais rapidez à produção. Em primeiro lugar, devemos trabalhar com a roda no máximo de velocidade, isso obriga as mãos a trabalharem mais rápido. E para ganhar algum tempo, consigo puxar o barro para cima de uma só vez e, em vez de puxar com os dedos, puxo logo com o cano e aliso o barro. Faço tudo ao mesmo tempo e poupo uma etapa. Ainda bem que aprendi esta técnica com o meu pai. Quando trabalhávamos juntos fazíamos dois mil potes por dia. Ele tinha mais prática, era ainda mais perfeito.
Quando o meu pai morreu, de repente, nós tínhamos uma encomenda de cinco mil copos. E um senhor nosso amigo, que também era oleiro, veio cá ajudar-nos. Disse “vou ajudar os rapazes”, e veio trabalhar com a gente. Ele começou a fazer os copos, e fazia uns 300 por dia. E eu, meio envergonhado, dizia ao meu irmão – e agora como é que vamos fazer isto? É que eu, novinho, e ali sentado ao lado deles fazia três vezes mais. Um dia o senhor disse “Eh pá… os copos até ‘avoam’“.
Muita gente pergunta se isto dá para sobreviver, ou se é preciso ter outra profissão, como se só desse para vir fazer isto de vez em quando. Mas isto é uma profissão normal, que dá para viver como todas as outras profissões. Antigamente, era uma profissão de miséria. A maior parte dos oleiros trabalhava descalço, para não desgastar as botas e os sapatos ao pontapear a roda. Hoje em dia, não.
Esta é uma aldeia de oleiros e eu sinto o peso da responsabilidade. Cabe-me a mim, agora, que sou um dos mais novos, tentar influenciar e não deixar morrer esta arte. Mas não sei como. Precisávamos de ter apoio.
Antigamente, os aprendizes vinham para aqui durante quatro ou cinco anos, trabalhar todos os dias sem ganhar um tostão. O meu avô – que depois acabou a casar com a minha avó – veio para aqui trabalhar. Esteve aqui dos 13 aos 18 anos sem ganhar um tostão. E depois precisou de dois cântaros para o pai, e o meu bisavô levou-lhe o dinheiro dos cântaros. Mesmo depois de estar aqui cinco anos sem ganhar um tostão.
Hoje em dia, não consigo ter aqui uma pessoa a pagar, mesmo que seja o ordenado mínimo, para durante uns anos não estar a produzir quase nada. Se houvesse apoios do Estado seria muito mais fácil para esta arte não morrer. Talvez um filho ou neto de algum oleiro queira aprender. Mas isso não é suficiente. Daqui a meia dúzia de anos, em vez de 22 olarias teremos só meia dúzia delas. Podem tornar-se indústrias em vez de olarias, com tudo mecanizado. Mas um dos nossos segredos, e vantagens, é fazermos cada peça de uma forma única. Isso é que vende.
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Há mais de duas dezenas de olarias em São Pedro do Corval, mas não chegam aos dedos de duas mãos os oleiros que sabem tudo da arte e se podem chamar de mestres. Nesta aldeia de Reguengos de Monsaraz tradição ainda é o que era, mas a sua reinvenção parece urgente – e já está a dar sinais no terreno.
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João Teixeira, o permacultor cervejeiro
João Teixeira é natural de Sintra e trabalhou décadas no setor financeiro até que decidiu mudar de vida. Pensou em dedicar-se à agricultura e agora divide essa paixão com a arte de fazer cerveja. Escolheu São Pedro do Corval pela vida comunitária que ali encontra.