João Teixeira é natural de Sintra e trabalhou décadas no setor financeiro até que decidiu mudar de vida. Pensou em dedicar-se à agricultura e agora divide essa paixão com a arte de fazer cerveja. Escolheu São Pedro do Corval pela vida comunitária que ali encontrou. Eis o seu testemunho.

“Aqui ainda há espírito de comunidade”
Chamo-me João Teixeira e nasci em Sintra. Ainda fui para o Rio de Janeiro, no Brasil, e lá fiquei até aos sete anos de idade; mas foi em Sintra que cresci e vivi durante muitas décadas. Trabalhei muitos anos na banca. E depois a minha vida deu uma volta muito grande.
Decidi dedicar-me à agricultura, literalmente. E Sintra é uma potência na agricultura e na permacultura. Tinha uma cooperativa ao pé de mim, onde aprendi muito. Depois estive na Ecoaldeia de Janas também.
É fascinante como numa terra tão pequenina como o Corval encontramos uma variedade tão grande de pessoas e proveniências.
João Teixeira
E nestes contextos de permacultura e de sustentabilidade aprendem-se vários ofícios, desde fazer sapatos à ideia de reviver ofícios antigos. Foi lá também que surgiu a ideia de fazer uma cerveja artesanal e de começar a aprender o processo. A verdade é que me apaixonei por esse processo. Comecei a fazer cerveja na Ecoaldeia de Janas, mas não ainda de uma forma oficial, a produzir, a passar faturas, a reportar ao fisco. Essa atividade acabei a desenvolvê-la apenas aqui, em São Pedro do Corval.
Lá em Sintra conheci a Paula – que apareceu na ecoaldeia porque queria aprender a plantar árvores. Ela queria plantar uma árvore por cada filho que tinha. Acabámos os dois juntos, a procurar um terreno para plantarmos a nossa vida. Acabámos por vir parar a Corval, depois de procurar em muitos territórios, de norte a sul do país.

Pensei que precisava de arranjar um terreno para fazer o meu projeto ligado à sustentabilidade e estar sossegadinho, completamente off-grid. Andámos a procurar um terreno adequado e baratinho. Em 2016 fomos parar a Santo António do Baldio, onde tenho os meus painéis solares, água do poço, o meu cantinho, quatro galinhas, três cabras, dois cães e uma pequena horta. Continuámos a trabalhar no terreno à volta de casa, onde queremos fazer uma agrofloresta. E, como estava com muitas dificuldades em avançar com o processo do fabrico da cerveja lá no terreno, decidi abrir a cervejeira em São Pedro do Corval, no antigo café Barrigana.
Inscrevi-me no fundo de desemprego, fui buscar um pequeno financiamento pela criação do próprio posto de trabalho e foi assim que dei início a esta atividade, no final de 2018. Naturalmente, com a pandemia tem sido terrível manter; mas, enfim, isto é mais uma paixão do que um negócio. Porque, para já, ainda é um mau negócio, não dá lucros, dá prejuízo. Mas lá vai aparecendo alguém a fazer uma encomenda. E tenho de continuar o processo de evangelização, com a certeza de que a minha cerveja é muito boa…
Na verdade, até a cerveja tem amigos. Aqui no Corval ainda há espírito de comunidade, e eu creio que é isso que se pretende. Aqui as pessoas nunca tinham ouvido falar de cerveja artesanal. No início pensavam que eu devia ser doido, que cerveja é cerveja. Mas o trabalho de evangelização tem continuado, tem sido difícil, mas já tenho tido apoios. A Câmara Municipal ajudou-me bastante na divulgação e os turistas já começam a vir e já ouviram falar da cerveja artesanal. Mas, enfim, estamos ainda a fazer os nossos clientes porque a pandemia também veio travar muito o processo.

Uma coisa importante para mim é a comunidade. Aprendemos isso mesmo no tempo da ecoaldeia. Por isso, quisemos descobrir onde é que era o “Rossio”, de São Pedro do Corval, saber onde as pessoas se juntavam, onde se podia perguntar quem precisa disto ou daquilo. Hoje, se eu pedir ajuda para um trabalho de pedreiro, para o jardim, para tratar dos canos aparece sempre gente. Toda a gente faz tudo e acho isso interessante.
Tivemos essa preocupação, de nos darmos a conhecer. E é fascinante como numa terrinha tão pequenina como o Corval encontramos uma variedade tão grande de pessoas e de proveniências. Holandeses, franceses, de cidades portuguesas… Também há muitas pessoas sozinhas aqui. Por isso são muito importantes as atividades que vão sendo organizadas por algumas instituições da aldeia, como a SUPA – Sociedade União e Progresso Aldeiamatense. Nós já participámos em workshops de fantoches e de máscaras, por exemplo, e estamos agora a participar ativamente no Coro Polifónico, onde está uma senhora holandesa, uma brasileira e gente da terra. Fazemos os ensaios do coro e depois apresentamos em espetáculo, quase sempre em igrejas, porque é onde encontramos a melhor acústica.
Já fizemos muitos amigos no Corval, sobretudo gente ligada ao campo. Há aqui um casal sueco também muito ligado à saúde com os alimentos, e é giro porque vamos acabando por ter novos conhecimentos e aprendendo coisas. É sobretudo bom porque todos nos sentimos acolhidos.

No início as pessoas têm uma certa desconfiança de quem vem de fora. É normal. Porque aparece aí gente que diz querer comprar, fazer mundos e fundos, e depois abandonam e não fazem nada. E depois há outras pessoas que, de facto, fazem alguma coisa, recuperam as casas, põem tudo bonitinho e depois fecham-se na comunidade deles e nem tentam comunicar com as outras pessoas. Há alguma diferença entre essas comunidades de expatriados e os que se aproximam das pessoas. Nós procuramos integrar-nos com todos.
Aqui, antes da Covid, havia muitas festas. Uma das melhores a que assistimos foi a da matança do porco, que é feita mesmo no centro da aldeia, no jardim do Corval – que até parece que foi construído para este efeito. Tem um cafezinho, um palco grande, e lugar para se estar a comer e a beber o dia todo.
Quando chegámos a essa festa já conhecíamos algumas pessoas e perguntámos se precisavam de ajuda. Foi assim que começámos a trabalhar nas festas também. E é muito bom, não só porque comemos e bebemos, mas porque vamos estando uns com os outros. E, no fim, termina tudo a cantar. Já não trocamos isto por nada.

O que é mais desafiador de viver numa aldeia como esta, para mim que montei uma cervejaria, é o custo da interioridade. Eu faço cerveja duas a três vezes por semana, tenho muita capacidade de produção. Tenho é dificuldades de escoamento.
Comecei com um distribuidor no Porto que me disse que sim, que vinha aqui buscar as cervejas. Eu disse-lhe que ia ser difícil arranjar transportadora, mas ele respondeu que já tinha uma e que vinha cá buscar… Dizia-me: “Eu tenho um contrato que, telefonando até ao meio-dia eles vão buscar até às 17:00”. Eu pensei: que porreiro! Mas o motorista não apareceu, dizia que já não conseguia vir. O distribuidor do Porto zangou-se, mas a verdade é que as cervejas ficaram aqui.
O mais desafiador de viver numa aldeia como esta, para mim que montei uma cervejaria, é o custo da interioridade.
João Teixeira
Acho que os espanhóis estão mais vocacionados para ultrapassar os problemas da interioridade, porque para eles tudo é interior, planeiam melhor as rotas. Por aqui basta dar um exemplo: se eu quiser ir de comboio de São Pedro do Corval para Faro, tenho de ir até Évora, de lá até Setúbal e só em Setúbal é que apanho um comboio para o Algarve.
Um dia bom para mim, aqui no Corval, é um dia em que eu esteja a fazer cerveja. Desde que fiz a primeira, em 2014 ou 2015, que me entusiasmei com isto, e gosto muito de criar. A minha cerveja chama-se duMato, porque antes de ser São Pedro do Corval esta aldeia chamava-se Aldeia do Mato. Foi em 1948 que mudou de nome, vá lá saber-se porquê. Na olaria, nos potes mais antigos, ainda se lê Aldeia do Mato. Eu pensei que Mato tem que ver com a ruralidade, acreditei que era um bom nome para a minha cerveja.

A última cerveja que fiz foi uma edição de Natal, em que usei mosto de uvas. Mas há outras coisas que eu gosto de fazer, além da cerveja. Podar árvores, tratar da horta, ir às galinhas e aos ovos…
O terreno ainda precisa de algum investimento, temos aqui quatro hectares onde ainda faço muito pouco. É mais a Paula que anda por aqui, com as suas ervas aromáticas, a fazer óleos essenciais, detergentes naturais. Mas ainda queremos fazer aqui a nossa agrofloresta.
Quando começámos a trabalhar neste terreno, que estava todo abandonado, os velhotes nossos vizinhos começaram a ficar contentes, a dizer que antigamente se punha esta semente ou aquela, que esta não pode ver o sol de maio e que a outra mais não sei o quê. Aprende-se muito com esta gente. Há aqui gente de saberes extraordinários.
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Cerveja Artesanal duMato
A aldeia de São Pedro do Corval chamava-se, antigamente, Aldeia do Mato, e foi mesmo esse o nome que João Teixeira escolheu para batizar as cervejas artesanais que produz numa cervejaria que montou em plena aldeia, onde antes funcionava um café.